A brincadeira, o jogo, a imitação, o desafio e a ilusão nos permitem criar, construir e estabelecer relações lúdicas com a vida. Quando crianças, as experiências que nos trazem a compreensão do mundo são vivenciadas no ato de brincar.
Assim como a obra de arte possibilita ampliar o conhecimento do homem sobre o ambiente que o rodeia, o mesmo pode ser aplicado às brincadeiras e aos brinquedos tão comuns na infância. Brincando, fortalecemos o elo entre a nossa realidade interior e a exterior. Assim, ordenamos e estruturamos o mundo que percebemos através dos símbolos, estabelecendo também a criação de elementos culturais.
Os brinquedos dizem muito sobre o tempo, a cultura e as características de um povo. Foram construídos, em diferentes épocas, pelas sociedades para as suas crianças.
As comunidades indígenas brasileiras utilizam materiais encontrados em seu meio ambiente para a confecção dos brinquedos infantis. A palha, por exemplo, é usada em dobraduras, representando animais e até reproduzindo elementos estranhos à cultura, como os aviões que sobrevoam as aldeias.
As mulheres da tribo carajá costumam fabricar minibonecas de barro para as suas crianças. As chamadas “licocós” são pequenas figuras que reproduzem a vida da tribo, comprovando a importante presença das vivências no desenvolvimento do processo criador.
As sobras do barro das cerâmicas utilitárias feitas na tribo são também oferecidas aos pequenos, que com elas constroem outros objetos para brincar.
Qualquer material, por mais simples que seja, poderá virar brinquedo nas mãos de uma criança. Basta que ele a faça pensar, intrigue ou, simplesmente, divirta. O brinquedo nos convida, nos desafia a medir forças, sejam elas físicas ou intelectuais. Sua criação envolve o pensamento nascido do desejo e, por isso, constrói conhecimento.
Todo adulto, em algum momento da infância, criou seus próprios brinquedos e inventou brincadeiras, vivendo tempos de ludicidade e prazer que ficaram gravados na memória.
Artistas brincantes
Muitos artistas reconhecem a importância do brincar na infância como elemento detonador de seu próprio processo criativo. Os designers brasileiros Fernando e Humberto Campana consideram que a infância no campo, onde construíam seus próprios brinquedos, foi determinante em seu trabalho. A obra dos irmãos Campana é lúdica, divertida e alegre como a infância. Apresenta experiências inusitadas com os materiais mais comuns e propostas ousadas que transformam projetos de objetos utilitários em verdadeiras peças escultóricas.
Um trabalho clássico desses artistas é a Cadeira Vermelha, feita com mais de 300 metros de corda trançada à mão. Desse emaranhado derivaram-se outros objetos, tramados com diferentes fios, que deram origem a uma famosa sapatilha de plástico, comercializada no Brasil em larga escala. Fernando e Humberto resgatam, em uma expressão contemporânea, as raízes brasileiras do artesanato indígena e popular.
As brincadeiras vividas na infância também influenciaram a obra do americano Alexander Calder. Incentivado pela família, construía seus próprios brinquedos, tomando por base diferentes materiais, entre eles: latas, fios e madeiras. Mais tarde, formado em Engenharia Mecânica, nunca deixou de construir brinquedos com movimento, como o Circo Calder, um conjunto de bonecos e animais projetado, construído, dirigido e apresentado pelo artista, em diferentes lugares, ao longo de 40 anos.
Por ser um desafio ao conhecimento, o ato de brincar impulsiona a imaginação de diferentes modos: a exploração do funcionamento do brinquedo, o desdobramento de suas funções e até a criação de novas possibilidades.
O artista uruguaio Torres García buscou na pintura uma renovação constante, desenvolvendo suas primeiras obras construtivistas. Paralelamente, elaborou uma produção significativa de brinquedos artesanais desmontáveis em madeira, que foram apreciados em toda a Europa e considerados obras de arte por sua originalidade e linguagem estética.
No percurso lúdico das brincadeiras, o casal de arquitetos americanos Charles e Ray Eames é considerado pioneiro em projetos que apontaram caminhos para a construção dos brinquedos na era tecnológica. Peças modulares e de encaixes, casas de bonecas e miniaturas de mobiliários são alguns dos projetos desenvolvidos pelos dois, que se inspiravam em sua coleção particular de brinquedos.
Brinquedos artesanais
Artesãos, em diferentes lugares do nosso país, também perpetuam essa magia que nos transporta ao mundo maravilhoso do faz de conta: bonecas de pano, carrinhos e barcos de chapas de lata, jogos de encaixe em madeira, fantoches e mamulengos.
Os bonecos artesanais têm suas raízes históricas no teatro medieval europeu. As marionetes eram utilizadas, naquela época, para difundir o catolicismo. Atualmente, retratam situações cômicas e sátiras do cotidiano. Manipulados por atores, os bonecos podem ser de luva, de vareta, de haste ou de fio.
No Brasil, o teatro de marionetes chegou por volta de 1700, adquirindo contornos locais e dando origem ao chamado mamulengo – brinquedo popular inigualável na dinâmica, simplicidade e alegria.
O mamulengo quase sempre é conduzido pelo próprio dono dos bonecos, que assume diferentes papéis: é artesão, ator, manipulador, dançarino, poeta, improvisador e cantador. O ritmo e a dança dão o clima do espetáculo, que atrai e encanta o público por sua energia criativa.
Brincadeiras de criança
Os brinquedos que produzem sons, que voam, que pulam, como piões, pipas, bolas, continuam encantando e fazendo parte do universo infantil. Muitos deles estão perpetuados em diferentes obras de arte.
Um registro antigo dessa temática é a pintura intitulada Jogos Infantis, de Pieter Bruegel, datada de 1560. São mais de 84 tipos de brincadeiras, com riqueza de detalhes, ocupando todo o espaço da tela, envolvendo cerca de 250 crianças. Os jogos pintados na obra são, em sua maioria, conhecidos e brincados até hoje.
Apresentando uma composição semelhante ao trabalho de Bruegel, o brasileiro Ivan Cruz constrói uma obra contemporânea, também baseada em jogos infantis, intitulada Brincadeiras de Criança. Colecionador de brinquedos antigos, ele retrata, com cores fortes e variadas, imagens de suas memórias de infância, entre elas, a brincadeira de soprar bolinhas de sabão, tema também pintado, em 1867, pelo francês Édouard Manet.
Outra infância vivida e registrada em telas foi a de Candido Portinari, na cidade de Brodósqui, no interior de São Paulo. Cirandas, papagaios no ar, piões rodopiando, bolas rolando nos campos, o vai e vem dos balanços e das gangorras ganharam formas e cores nas pinturas do artista.
No Brasil, a representação de crianças brincando é uma constante na obra de artistas de todos os tempos: marchando como soldados, na aquarela de Debret; jogando bilboquê, na tela de Belmiro de Almeida; tocando tambor, na pintura de Rodolfo Amoedo.
E continuaram ganhando espaço com os brinquedos populares pintados por Volpi; a brincadeira de cabra-cega, de Teruz; a ciranda, de Milton Dacosta; os jogos de gude, de Carlos Scliar; a boneca, de Tarsila.
As experiências do brincar, desde a invenção ou reinvenção de uma brincadeira, passando pela construção do brinquedo, podem ficar registradas de diferentes formas. Esses momentos prazerosos são assim eternizados, guardando o sonho e a descoberta da infância vivida por todos os arteiros e artistas.
(Texto extraído do fascículo Artes, Artistas e Arteiros, da MultiRio).