ACESSIBILIDADE
Acessibilidade: Aumentar Fonte
Acessibilidade: Tamanho Padrão de Fonte
Acessibilidade: Diminuir Fonte
Youtube
Facebook
Instagram
Twitter
Ícone do Tik Tok

Gnaisse facoidal é a rocha da beleza carioca
05 Junho 2017 | Por Sandra Machado
Compartilhar pelo Facebook Compartilhar pelo Twitter Compartilhar pelo Whatsapp
Vista do Morro de Santo Antônio, atual Largo da Carioca, segundo Taunay (1816) (Fonte: Pinterest)

Se existe uma pedra que está sempre à vista de quem vem ao Rio é o gnaisse facoidal. Embora o nome soe estranho aos ouvidos, pelo menos aos olhos a rocha é bastante familiar, porque pode ser encontrada em toda parte da cidade, quer estejamos falando das belezas naturais ou das construídas pela mão humana. Diógenes Campos, diretor do Museu de Ciência da Terra, explica que este tipo de gnaisse não é exclusividade do Rio de Janeiro, Niterói e municípios vizinhos. “Existem várias ocorrências dessa rocha no mundo”. O que surpreende aqui, no entanto, é sua utilização em larga escala e consequente inserção na paisagem urbana.

Também conhecido como Augen (do alemão “olhos”) Gneiss, gnaisse ocelar, pedra-de-galho, ou granito da Tijuca, o material foi usado na construção de boa parte dos monumentos históricos da cidade em forma de ornamentos, fachadas e molduras de portas e janelas. Os colonizadores portugueses trouxeram consigo a tradição da pedra talhada, denominada cantaria. A arte chegou ao país com a comitiva de Tomé de Souza, em 1549, e a vinda do mestre Luís Dias, que realizou os primeiros trabalhos em Salvador. No centro do Rio, região mais antiga da cidade, além de moradias, há ruas inteiras pavimentadas com a rocha, seja no calçamento, nos paralelepípedos e até nos meios-fios. Bons exemplos estão no corredor cultural que vai da Igreja da Candelária até a Praça Quinze – na Rua Visconde de Itaboraí, na Rua do Mercado, e na Travessa do Comércio, que liga a Praça Quinze à Rua do Ouvidor. No entorno do Passeio Público, nas redondezas dos Arcos da Lapa, a calçada é toda revestida das pedras centenárias.

Rua Direita, atual Primeiro de Março, em pintura de Rugendas (1889) (Fonte: commons.wikimedia.org)

A partir do século XVIII, não foram poucos os viajantes estrangeiros que legaram relatos escritos ou imagens mostrando a peculiaridade da arquitetura em pedra na metrópole carioca. Entre eles, os navegadores ingleses John Byron e James Cook, os naturalistas alemães Von Pix e Von Martius, e os pastores protestantes e pesquisadores norte-americanos Kidder e Fletcher, para quem o calçamento da Rua Direita, atual Primeiro de Março, nada ficava a dever às vias mais bem pavimentadas de Londres e Viena. Nas artes plásticas, permanecem os registros feitos por mestres como Nicolas-Antoine Taunay, Thomas Ender e Johann Moritz Rugendas, entre outros.

O porquê das rochas

A extração das rochas influenciava diretamente a constituição do traçado urbano, uma vez que intensificava a circulação de pessoas. Caminhos que, de início, eram utilizados para escoar o material retirado das pedreiras foram, pouco a pouco, se transformando em ruas urbanizadas.

De acordo com especialistas, o padrão geológico e geomorfológico da cidade do Rio de Janeiro pode ser definido como uma baixada alagadiça, cheia de mangues e charcos, rodeada por grandes maciços rochosos que foram determinantes da evolução urbana carioca. No período colonial brasileiro, as casas eram construídas com paredes de taipa, ou seja, o barro aplicado sobre hastes de madeira. Mas, no Rio, o terreno alagado demais e carregado de resíduos orgânicos fazia com que ele se tornasse impróprio para esse uso, o que levou à utilização preferencial de rochas, apesar de toda a dificuldade de extração, transporte e manuseio.

Obra de Debret, da década de 1830, mostra a exploração do gnaisse facoidal no Morro da Glória. O uso de explosivos para quebrar o maciço está documentado na gravura

Muitas pedreiras que existiam na região central e da Zona Sul, hoje parcialmente arrasadas, situadas em local de difícil acesso ou escondidas atrás de arranha-céus, tiveram papel fundamental na ocupação da Cidade Maravilhosa. Já no início do século XVII, religiosos carmelitas obtiveram autorização para explorar o material encontrado na Ilha da Enxada, que seria usado para a construção do Convento (1619) e, posteriormente, da Igreja da Ordem Terceira do Carmo (1770). Da mesma forma, os beneditinos solicitaram as pedras produzidas no Morro da Viúva, anteriormente chamado também de Morro do Leripe e de Morro do Flamengo, para iniciar, em 1633, a construção da Igreja de Nossa Senhora de Montserrat, que hoje integra o complexo do Mosteiro de São Bento.

O gnaisse facoidal também está presente nos Arcos da Lapa (1723), no Paço Imperial (1743), e nas escadarias do cais e do Chafariz do Carmo, popularmente conhecido como Chafariz da Praça Quinze (1750). Segundo alguns historiadores, uma das pedreiras da Glória seria de propriedade do Conde D’Eu, que teria construído, na área arrasada, o conjunto de casas populares que inspirou Aluísio Azevedo a escrever o romance O Cortiço, publicado em 1890.

Pedras culturais e esculturais

No dia 1º de julho de 2012, a cidade do Rio de Janeiro foi agraciada com o título de primeira paisagem cultural urbana declarada patrimônio mundial, conferido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Paisagem cultural aí entendida como o meio ao qual o ser humano imprimiu suas formas de expressão. É fato que o Rio tem sido objeto da admiração desde que sua contemplação passou a ser compartilhada não só pelas tribos indígenas, mas com o olhar do branco europeu. “É a mais airosa e amena baía que há em todo o Brasil”, afirmou o Padre José de Anchieta sobre a Baía da Guanabara, em carta datada de 1585.

Vista da pedreira de São Diogo, no Morro da Providência, com entrada da Quinta da Boa Vista em primeiro plano, em foto de 1876 (Fonte: Lago & Lago)

A partir da vinda da família real, em 1808, houve um aumento da urbanização, o que fez com que a extração de rochas atingisse seu apogeu no século XIX, especialmente no entorno do Morro da Conceição, que fica na área central da cidade. Mas o período também foi o auge da investigação científica por parte de naturalistas estrangeiros que, financiados pela nobreza europeia, cumpriam sua missão acadêmica e, em paralelo, faziam um levantamento de descobertas potencialmente comercializáveis. A atividade de tantos visitantes gerou o surgimento dos chamados “escravos de naturalista”, negros alforriados que conheciam os caminhos, sabiam como conseguir alimentos na floresta e também tinham adquirido as técnicas do preparo das amostras a serem catalogadas por aqueles pesquisadores.

Um marco dessa importante fase de prospecção é o livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, escrito e ilustrado por Jean-Baptiste Debret, e publicado na França em 1834, no qual ficou retratado o amplo uso do gnaisse facoidal na cantaria, e listadas as localidades onde eram exploradas as pedreiras: Morro da Glória, pés do Corcovado, Catete e Centro. Debret atribuiu o alto custo da pedra à lentidão da mão de obra escrava, que trabalhava sem nenhum abrigo contra a exposição solar, enquanto abria furos na rocha com barras de ferro pontiagudas, onde se adicionava a pólvora. Para evitar o calor, o transporte do material até o local das obras era feito por carro de bois durante a madrugada.

Gnaisse por todos os lados

Não são poucos os pontos turísticos cariocas que apresentam o gnaisse facoidal em algum traço de sua arquitetura. Nas cercanias da Igreja da Candelária, uma série de patrimônios confirma a afirmação: a Casa França-Brasil, inaugurada como Praça do Comércio em 1820; logo adiante, o Centro Cultural Correios e o Centro Cultural Banco do Brasil, cujas construções se iniciaram em 1875 e 1880, respectivamente; a Igreja Nossa Senhora da Lapa dos Pescadores, inaugurada em 1747; e a Igreja Santa Cruz dos Militares, construída em 1628.

Pedreira situada no Morro do Inhangá, que separava o Leme de Copacabana, em foto de Augusto Malta (1910) (Fonte: G. Ermakoff)

A quantidade de prédios construídos ou adornados com a rocha espanta de verdade: o Palácio da Ilha Fiscal; o Palácio do Catete, onde funciona o Museu da República; o Arquivo Nacional, que ostenta colunas de seis metros esculpidas em gnaisse facoidal; o Museu de Ciência da Terra, ou Palácio da Geologia; o Museu Nacional de Belas Artes; o Museu Histórico Nacional, os prédios da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no campus da Praia Vermelha; a Igreja de Santa Luzia e a de Santo Cristo dos Milagres; e o Palácio Gustavo Capanema.

Dentre os mais destacados lugares de formação da identidade carioca está a Pedra do Sal, degraus escavados diretamente na rocha pelos escravos para o acesso ao Morro da Conceição, na plataforma de onde saudavam os navios negreiros que chegavam ao Rio de Janeiro no século XVII e XVIII. Neste, que é um dos mais ilustres berços do samba, negros cativos e estivadores recolhiam o sal que se perdia no desembarque da carga para revender e conseguir algum dinheiro – memória de onde vem o nome do patrimônio tombado, que de paisagem natural se tornou histórica e cultural.

Para as gerações futuras, o gnaisse facoidal continuará preservado, uma vez que ele ainda pode ser encontrado em duas grandes áreas de proteção ambiental, equivalentes a cerca de 20% do território da cidade: o Parque Nacional da Tijuca e o Parque Estadual da Pedra Branca.

Fontes:

ALMEIDA, Soraya e PORTO JÚNIOR, Rubem. Cantaria e Pedreiras Históricas do Rio de Janeiro: Instrumentos Potenciais de Divulgação das Ciências Geológicas. In: Terrae Didatica 8(1): 3-23, 2012.

PORTO JÚNIOR, Rubem e DUARTE, B. P. Evolução do Conhecimento Geológico na Cidade do Rio de Janeiro. In: Para Aprender com a Terra – Memórias e Notícias de Geociências no Espaço Lusófono. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012.

MANSUR, Kátia et alli. O Gnaisse Facoidal: a Mais Carioca das Rochas. In: Anuário do Instituo de Geociências, UFRJ, vol. 31 – 2/2008, p. 9-22.

Site da Unesco

 
Compartilhar pelo Facebook Compartilhar pelo Twitter Compartilhar pelo Whatsapp