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Cais do Valongo é Patrimônio da Humanidade
19 Julho 2017 | Por Sandra Machado
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Sítio arqueológico: em primeiro plano, o Cais da Imperatriz e, ao fundo, o Cais do Valongo (Fonte: Dossiê do Iphan/Foto: Milton Guran)

A cidade do Rio de Janeiro, que já havia sido incluída como bem cultural na Lista do Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 2012, pelas suas paisagens entre a montanha e o mar, acaba de ter mais um trecho tombado. No entanto, cabe muito mais a ideia de homenagem do que a de celebração. Desta vez, é o Cais do Valongo, maior porta de entrada dos negros africanos escravizados, que recebe o tombamento, como um sítio histórico sensível. A categoria sinaliza um lugar de memória da violência contra a humanidade, assim como Hiroxima, uma das cidades japonesas bombardeadas na Segunda Guerra, e Auschwitz, campo de concentração nazista mantido na Polônia durante o mesmo confronto mundial. A decisão do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco, divulgada em 9 de julho de 2017, distinguiu outros 21 locais em diversos países. Os Parques Nacionais da Chapada dos Veadeiros e das Emas, no cerrado brasileiro, que eram considerados patrimônio natural desde 2001, lamentavelmente passam, agora, para a lista do patrimônio mundial em perigo.

Tráfico negreiro subestimado

Depois de passarem pela alfândega, barcos de pequeno porte atracavam no Cais do Valongo. A ilustração de Johann Moritz Rugendas mostra o controle aduaneiro (Fonte: Dossiê do Iphan)

Muito embora os dados oficiais adotados, inclusive, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) apontem cerca de um milhão de escravos desembarcados no Cais do Valongo, esse número pode ter sido ainda maior. Durante muito tempo, a principal referência era o livro Escravidão Africana no Brasil, publicado por Maurício Goulart em 1949. Na obra, o historiador estimava em 3,6 milhões o total dos negros trazidos ao Brasil. Mais recentemente, a afirmação de pesquisadores da Universidade de Emory, em Atlanta, nos Estados Unidos, é de que, na realidade, foram 4,8 milhões de pessoas escravizadas, metade delas com passagem pelo Valongo entre 1811 e 1843, vindas principalmente do Congo e de Angola, sendo que aproximadamente 300 mil não teriam sobrevivido às condições subumanas de transporte, numa travessia de até três meses. Este banco de dados contém um levantamento de todas as viagens transatlânticas realizadas entre 1514 e 1866 e está disponível, em versão traduzida, na página da Fundação Casa de Rui Barbosa na internet. De acordo com essa atualização dos cálculos, o Sítio Arqueológico Cais do Valongo se torna o maior porto escravagista da história.

Valongo é o único cais de desembarque de escravos remanescente no mundo

Em outro trabalho, Rugendas reproduziu o mercado de escravos no Rio (Fonte: Dossiê do Iphan)

Em 1741, foi aberta a Rua do Valongo, atual Camerino, pela qual os desembarcados seguiam para o mercado de compra e venda dos escravos. A partir de 1774, por determinação do Marquês do Lavradio, então Vice-Rei do Brasil, os africanos cativos passaram a chegar, exclusivamente, na Praia do Valongo, para evitar que transitassem imundos e despidos na área residencial da Rua Direita, hoje chamada 1º de Março. Foi instalado, também, um lazareto, onde eram tratados os doentes, e o cemitério chamado Pretos Novos, como eram conhecidos os recém-chegados.

O incremento do tráfico negreiro fez com que, em 1811, obras de infraestrutura renovassem as instalações, incluindo o calçamento de pedra de um trecho da Praia do Valongo, que constitui o Sítio Arqueológico Cais do Valongo propriamente dito. Duas décadas depois, a Lei Feijó surgia para proibir o tráfico, e o cais foi desativado. Mas, como a trégua durou apenas um ano, em 1832 aparecia, na boca do povo, a expressão “para inglês ver”, usada até hoje para qualificar qualquer situação de fachada. Um aterro realizado em 1843, quando o ancoradouro foi usado para receber a consorte de Pedro II, Dona Teresa Cristina, fez com que as “pedras de mão” pisadas pelos escravos ficassem ocultas no local, rebatizado de Cais da Imperatriz. Muito embora a Lei Eusébio de Queiróz, de 1850, tenha finalmente extinguido a atividade no país, há registros de que, até 1872, escravos africanos ainda eram trazidos clandestinamente da África para o Rio de Janeiro.

Todos os anos, yalorixás fazem a lavagem do Cais do Valongo, que integra o calendário oficial de eventos da cidade (Fonte: reimont.com.br)

Uma iniciativa urbanística posterior parecia indicar o desejo de enterrar, definitivamente, a memória do capítulo mais vergonhoso da história da cidade. Em 1911, também o Cais da Imperatriz foi aterrado e durante exatamente um século assim permaneceu. No entanto, as obras de preparação da cidade para os Jogos Olímpicos de 2016 e a revitalização da Zona Portuária exigiram que fosse realizado o monitoramento arqueológico da região. Uma equipe do Museu Nacional, coordenada pela arqueóloga Tania Andrade Lima, fez a varredura de cinco quarteirões entre janeiro de 2011 e junho de 2012, localizando uma coleção de peças de diversas culturas africanas composta de aproximadamente 500 mil artefatos, entre colares, amuletos e peças rituais apotropaicas (que protegem contra o mal).

Passado revelado

Cachimbo de cerâmica encontrado nas escavações das obras do Porto Maravilha (Fonte: Dossiê do Iphan/Foto: João Maurício Bragança)

Diante da sugestão das Organizações dos Movimentos Negros, a Prefeitura transformou o espaço em monumento preservado e aberto à visitação pública, e também em patrimônio cultural da cidade. O Cais do Valongo passou a fazer parte do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, que considera pontos estratégicos da ocupação afro-brasileira na Região Portuária, ao lado do Jardim Suspenso do Valongo, do Largo do Depósito, da Pedra do Sal, do Centro Cultural José Bonifácio e do Cemitério dos Pretos Novos. No local em que o cemitério funcionou, de 1769 a 1830, foi criado o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN). Em 1996, ao começar uma reforma na casa recém-adquirida, o casal Petrúcio e Maria De La Merced Guimarães se deparou com os primeiros vestígios de ossadas, e, na sequência, fundou a instituição. Até o momento, tem sido difícil a identificação dos restos mortais, uma vez que os corpos, segundo descrição de viajantes da época, não eram enterrados em covas individuais, mas amontoados em valas comuns, eventualmente incinerados e depois cobertos com terra.

Fontes:

Jornal O Globo, press release da Unesco, site e dossiê do Iphan, site Museus do Rio

 
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