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Estresse tóxico prejudica desenvolvimento infantil
16 Agosto 2017 | Por Sandra Machado
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Atenção e cuidados fazem bem à saúde, principalmente no caso dos bebês (Foto: Shutterstock)

Além de prazeroso, é necessário para um bebê que o segurem com carinho, falem com ele e o acalentem quando chora. Mas se, em vez disso, ele estiver cercado por um ambiente hostil, onde nem ao menos suas necessidades básicas são atendidas, existem grandes chances de que venha a sofrer de estresse tóxico. O conceito define o processo pelo qual uma criança, em situação de negligência, acaba adotando um estado de alerta contínuo, com graves prejuízos para sua formação integral. 

Funcionamento do cérebro se estrutura no começo da infância

Assim como boas relações socioafetivas contribuem para a aquisição de competências no futuro, estímulos negativos, como a sensação de insegurança ou de medo, deixam a criança mais vulnerável a doenças, distúrbios de comportamento e dificuldade de aprendizagem. Além disso, oportunidades menores de desenvolvimento na infância têm consequências sobre o grau de empregabilidade na vida adulta, perpetuando o chamado ciclo intergeracional da pobreza. Muito embora os avanços recentes em favor da primeira infância no Brasil sejam uma realidade, para a grande maioria da população, a Educação Infantil continua sendo predominantemente assistencial.

O neurocientista Fernando Mazzilli Louzada é professor associado da Universidade Federal do Paraná, onde coordena o Laboratório de Cronobiologia Humana. Mestre e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado na Harvard Medical School, ele é também membro do Núcleo Ciência Pela Infância, e concedeu uma entrevista a respeito do estresse tóxico para o Portal MultiRio.

Portal MultiRio – Qual a melhor definição de estresse tóxico? 

O neurocientista Fernando Mazzilli Louzada é membro do Núcleo Ciência Pela Infância (Fonte: Arquivo pessoal)

Fernando Mazzilli Louzada – O estresse é essencial, uma resposta adaptativa fundamental. Tomemos um atleta como exemplo. Numa final de campeonato, essa resposta mobiliza as reservas do corpo, mudando o batimento cardíaco e a vascularização, deixando-o mais capaz. Mas, se você torna esse estresse frequente e recorrente, faz com que essas modificações fiquem crônicas, e o corpo perde a capacidade de voltar ao estado normal. Essa exposição, ao contrário do estresse positivo, leva a um desequilíbrio no funcionamento neuroendócrino, levando a mudanças na arquitetura cerebral e no funcionamento de múltiplos órgãos e sistemas. Mesmo que o agente estressor desapareça, ele deixou marcas, não apenas no cérebro. A quantidade de receptores de hormônios se modifica. Também os músculos alteram sua resposta à glicose, o que aumenta a probabilidade de incidência de diabetes. Muda também, de maneira duradoura, o funcionamento de órgãos como os pulmões, intestino etc. O sistema de defesa do corpo tem uma memória. O conceito de estresse tóxico vem de uma formulação recente. É uma condição fruto da exposição severa e frequente ou prolongada a adversidades no início da vida, como abuso, negligência e abandono. 

PM – Como se pode identificar se uma criança está ou não sofrendo de estresse tóxico?

FML – Não é tão simples verificar o quanto esse estresse já deixou consequências porque não existe um marcador, como um exame de imagem cerebral ou de sangue. Mesmo assim, pode se verificar o entorno e as dificuldades enfrentadas pela criança. A avaliação sempre vai ser multidisciplinar, com médico, psicólogo e pedagogo analisando as alterações orgânicas, socioemocionais e de aprendizagem, respectivamente.

PM – Uma criança exposta ao estresse tóxico necessariamente terá dificuldade na escola ou as consequências podem se refletir de outras formas, como no seu equilíbrio emocional na idade adulta?

FML – Necessariamente, não, pois há inúmeras diferenças individuais. Algumas pessoas têm muita resiliência, a capacidade de enfrentar e superar adversidades. Parte desta resiliência parece vir de habilidades socioemocionais que a criança desenvolve ao longo da vida. Por outro lado, o estresse tóxico deixa marcas na estrutura e funcionamento cerebral, o que pode comprometer o desenvolvimento emocional e cognitivo.

PM – Quais são as implicações políticas e sociais do estresse tóxico infantil em larga escala?

FML – Em larga escala, estamos impedindo que uma geração de crianças atinja todo o seu potencial, seja na vida pessoal ou profissional. Além disso, estamos aumentando os riscos destas crianças apresentarem transtornos psiquiátricos.

PM – Transtornos alimentares, como obesidade, anorexia e bulimia se incluem nesse rol?

FML – A obesidade, sim. Falo do que já foi publicado e descrito pela literatura médica. O estresse tóxico quase duplica as chances de ocorrência da obesidade severa, assim como aumenta a probabilidade do uso de drogas.

PM – Poderíamos dizer que esse é o caso do Brasil, atualmente?

FML – Não tenho dúvida, diante das condições de uma boa parcela da população. Muitos jovens e adultos foram prejudicados e já estamos pagando o preço. Reverter essa situação não vai ser fácil porque demanda uma política de Estado. Existem inúmeras iniciativas de algumas prefeituras, mas, depois de quatro anos, quando muda a gestão, não existe continuidade. No entanto, só o fato de as pessoas estarem falando mais do assunto já ajuda...

PM – É correto enfatizar os chamados “períodos críticos ou sensíveis”, com maior grau de plasticidade cerebral, como os mais indicados para aprendizagens específicas?

FML – Sim, esses períodos existem, há momentos de maior plasticidade, como a primeira infância e a puberdade, mas não devemos adotar uma perspectiva determinista, pensando que, se esses períodos não forem aproveitados, não haverá mais possibilidade de aprendizagem. Haverá, sim, embora com maiores dificuldades. Por esse motivo sugere-se, por exemplo, que a aprendizagem de uma segunda língua seja feita antes dos 12 anos de idade.

PM – Os neurônios não se renovam ao longo da vida, é correto? O estresse do bebê pode causar redução do número total ou danos a este tipo de célula? Com quais consequências?

FML – Antigamente, acreditava-se que não formamos novos neurônios ao longo da vida. Hoje sabemos que, ao menos em algumas regiões do cérebro, como é o caso do hipocampo, são formados novos neurônios na vida adulta. O estresse do bebê não leva necessariamente à morte neuronal, mas modifica profundamente a maneira como os neurônios se conectam, a “arquitetura” das redes neurais.

PM – O que determina o desenvolvimento (intelectual) do cérebro: os genes, a interação deles com as experiências vividas (boas e ruins), ou ambos?

FML – O desenvolvimento cerebral é fruto da interação entre fatores genéticos e da influência ambiental. Nossa espécie tem uma programação genética que nos confere dezenas de bilhões de neurônios, mas a maneira como eles se conectam, formando as chamadas redes neurais, depende muito do ambiente, a começar pela vida intrauterina. Cada neurônio pode se conectar com centenas ou até milhares de outros neurônios, e a força dessas ligações (e seu desaparecimento) depende de nossas experiências. Podemos dizer que as experiências “esculpem” a estrutura cerebral.

PM – O que se pode dizer da vida escolar?

FML – Professores não deixam de ser escultores dos cérebros de seus alunos. Boa parte do tempo o aluno está em contato direto com o professor, que tem uma participação importante na formação das redes neuronais. Gosto de usar a seguinte imagem em sala de aula: imaginemos um conjunto de trilhas numa área. Temos dezenas de bilhões de neurônios conectados uns com os outros por meio dessas trilhas. Nossas experiências podem reforçar ou fazer desaparecerem essas trilhas. Aquelas que se desenvolvem viram estradas, enquanto nas outras o mato cresce. Até algumas décadas atrás, não se sabia que as experiências afetam de maneira tão significativa a configuração das conexões neuronais. Nosso cérebro foi construído ao longo da evolução para consolidar, de maneira mais forte, experiências que estão associadas à dor e ao prazer, pois estas, em geral, estão relacionadas à sobrevivência: procuramos evitá-las ou repeti-las.

PM – Quer dizer que essas são as mais marcantes? Qual a importância da memória nesse processo?

FML – A memória se constitui de representações dos fatos, das experiências e emoções que vivenciamos. Elas estão “inscritas” nas redes de neurônios. O cérebro foi construído ao longo da evolução para priorizar a formação de memórias de eventos relevantes. Se o adulto é uma figura que traz sofrimento para a criança, por negligência ou abuso, consequentemente ela vai ter medo e dificuldade de se relacionar, procurando evitar essas situações.

PM – Mas como uma criança aprende a lidar com as frustrações?

FML – Inevitavelmente, por melhores que sejam suas condições de desenvolvimento, ela passará por situações de sofrimento e frustração. Passar por essas experiências também é importante para o amadurecimento cerebral, mas é fundamental que, nessas situações, a criança tenha o apoio e suporte dos adultos. Proteger não é simplesmente blindá-la de sofrimento e frustração, mas ajudá-la a lidar com estas adversidades. Apenas evitar a qualquer custo que os filhos passem por frustrações é um equívoco profundo, pois impedirá o seu amadurecimento.

PM – Que estruturas do cérebro mantêm a plasticidade ao longo da vida?

FML – O amadurecimento das regiões cerebrais se dá em diferentes momentos do desenvolvimento. Algumas já estão praticamente maduras ao nascer, enquanto outras só completam seu amadurecimento na vida adulta. A região do córtex pré-frontal, muito importante para as funções executivas, como tomar decisões e planejar, é um exemplo de área que amadurece mais tardiamente. É importante pensarmos em por que as áreas cerebrais não se mantêm altamente plásticas ao longo de toda a vida. Plasticidade significa, ao mesmo tempo, oportunidade e vulnerabilidade. Oportunidade de novas aprendizagens, da aquisição de novas habilidades, mas também vulnerabilidade a agentes nocivos, que é o caso do estresse tóxico na primeira infância.

PM – Pais ausentes nem sempre conseguem garantir que os filhos cresçam em um ambiente desafiador, propício para o desenvolvimento da autoestima, da autonomia e do senso de responsabilidade. O que acontece quando essas crianças chegam à vida adulta?

FML – Quanto maiores forem as adversidades que ocasionam o estresse tóxico, maiores serão as dificuldades da criança, tanto na vida pessoal quanto na profissional. É importante ressaltar que adversidades na primeira infância não trazem apenas dificuldades emocionais ou cognitivas, mas aumentam a predisposição a inúmeras enfermidades, como doenças respiratórias, cardiovasculares, assim como a dependência por abuso de drogas, como o álcool e o tabaco.

PM – No estudo do Núcleo Ciência Pela Infância (NCP), publicado em 2014, o atendimento das crianças em creches é relativizado: enquanto as instituições de boa qualidade são consideradas benéficas, o documento afirma que aquelas de baixa qualidade podem gerar prejuízos no desenvolvimento das crianças. A questão não é apenas quantitativa, mas também qualitativa. É melhor deixar o filho sob os cuidados domiciliares do que numa creche ruim?

FML – Os dados disponíveis indicam que sim, mas obviamente que isso depende de quais cuidados domiciliares estão sendo oferecidos à criança. Na creche ideal, é preciso existir profissionais com formação pedagógica, que conheçam as necessidades da criança e desenvolvam, com ela, atividades intencionais para o seu desenvolvimento. Em muitos casos, no entanto, o que existe é um espaço sem estrutura adequada e profissionais sem formação. Isso é uma desvantagem em relação a um ambiente doméstico acolhedor, onde a criança se sinta segura. De maneira geral, não há consenso e falta clareza entre os gestores, pais e mesmo entre educadores sobre o que uma boa creche deve oferecer. Não podemos achar que bastam cuidados de higiene e alimentação para que essa instituição esteja cumprindo seu papel.

PM – Qual a sua opinião sobre investimento público na primeira infância, como política de Estado?

FML – Deveria ser prioridade zero. É muito difícil enxergar um futuro promissor para um país se a primeira infância não é uma prioridade, definida por uma política de Estado e não de governo. Houve avanços no Brasil nas últimas duas décadas, mas ainda é muito pouco. Entre as crianças de 0 a 3 anos, existe um número significativo fora da creche. Não se pode achar que esse recurso é um gasto. Estudos do professor James Heckman, prêmio Nobel de Economia de 2000, mostraram que quanto mais cedo for o investimento na primeira infância, maior será o retorno mais adiante para o indivíduo e para a sociedade.

PM – O senhor é pesquisador de sono. Existe alguma alteração significativa durante a primeira infância, nos casos em que a criança sofre de estresse tóxico?

FML – Sim, o estresse tóxico se reflete na qualidade do sono. O estresse crônico é uma das causas da insônia na idade adulta. No caso das crianças, existem efeitos sofre a saúde física e o desenvolvimento da cognição. É importante ressaltar que a falta de sono nem sempre é a causa dos problemas, mas ela pode servir para ajudar a identificar aquela condição. Se a criança não está dormindo bem, muito provavelmente pode ser por um problema no amadurecimento do sistema nervoso, o que está relacionado a questões genéticas, mas, também, a aspectos ambientais. Quando acontece o atraso nesse amadurecimento, um dos sintomas é a alteração do sono. Cabe aos responsáveis estabelecer um dia e uma noite bem definidos, possibilitar as interações sociais necessárias de estímulo à comunicação, bem como interações saudáveis com outras crianças. O sono mais agitado de um bebê de 24 meses, por exemplo, pode significar que ele vai apresentar dificuldade de aprendizado porque alguma coisa não está indo bem. Por outro lado, precisamos entender e respeitar as diferenças e ter paciência, para não corrermos o risco de gerar diagnósticos incorretos na busca de um suposto padrão de normalidade.

 

Fontes:

BARTOSZECK, Amauri; BARTOSZECK, Flavio. Neurociência dos seis primeiros anos – implicações educacionais. Laboratório de Neurociência & Educação, Universidade Federal do Paraná. Acesso em 01/06/2017.

CAMPOS, Roselane Fátima. Educação Infantil – políticas e identidade. In: Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 5, no. 9, p. 217-228, jul/dez 2011. http://www.esforce.org.br. Acesso em 01/06/2017.

Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (2014). Estudo nº. 1: O impacto do desenvolvimento na primeira infância sobre a aprendizagem. http://www.ncpi.org.br. Acesso em 07/07/2017.

In Brief: The Science of Early Childhood Development. http://www.developingchild.harvard.edu. Acesso em 01/06/2017.

 
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