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Marchinhas de carnaval retratam o Rio de Janeiro
05 Fevereiro 2018 | Por Fernanda Fernandes
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Sem abrir mão do deboche e da malícia, as marchinhas de carnaval são verdadeiras crônicas e um capítulo importante da música brasileira, que nos permite viajar pela história da cidade do Rio de Janeiro, de seu povo e de seus costumes. Nas letras, crítica social, episódios políticos, curiosidades e muita irreverência.

Durante a ditadura Vargas, era obrigatório que as repartições públicas expusessem uma foto do líder na parede. No entanto, com a deposição de Getúlio, em 1945, as imagens foram retiradas. Em 1950, quando ele venceu as eleições, as fotografias voltaram aos seus lugares. E o episódio não passou batido por Haroldo Lobo e Marino Pinto, autores de Retrato do velho (1951), que saudava o retorno de Vargas à cena política – e acabou por tornar-se uma espécie de jingle político da nova presidência:

“Bota o retrato do velho outra vez
Bota no mesmo lugar
O sorriso do velhinho
Faz a gente trabalhar, oi!
Eu já botei o meu
E tu não vais botar?
Já enfeitei o meu
E tu vais enfeitar?
O sorriso do velhinho
Faz a gente se animar, oi!”. 

Nesse mesmo período, entre a queda de Getúlio e a proximidade das primeiras eleições depois de tantos anos, uma canção falava sobre o costume de bajular os poderosos. Cordão dos puxa-sacos (1946), de Frazão e Roberto Martins, diz:

“Lá vem o cordão dos puxa-sacos, dando vivas aos seus maiorais
Quem está na frente é passado pra trás
E o cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais
Vossa Excelência, Vossa Eminência
Quanta reverência nos cordões eleitorais
Mas se o doutor cai do galho e vai ao chão
A turma toda ‘evolui’ de opinião
E o cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais”.

 

A crítica social 

Desfile do Cordão do Bola Preta nos anos 1930 (Foto: www.memoriaviva.com.br)

Algumas marchinhas versaram sobre as crises de abastecimento de água que assolaram a população carioca, como Tomara que chova (1951), de Paquito e Romeu Gentil:

"Tomara que chova
Três dias sem parar
A minha grande mágoa
É lá em casa não tem água
E eu preciso me lavar". 

Naquela década, além da falta d’água, a população sofria com panes de eletricidade, fato retratado na composição Vagalume (1954), de Vitor Simon e Fernando Martins: 

“Rio de Janeiro
Cidade que nos seduz
De dia falta água
De noite falta luz”.

Questões habitacionais estiveram em voga, criticando a desenfreada exploração dos aluguéis, os processos de despejos e remoções de favelas:

“Há quanto tempo não tenho onde morar
Se é chuva apanho chuva
Se é sol apanho sol
Francamente, pra viver nessa agonia
Eu preferia ter nascido caracol
Levava a minha casa nas costas muito bem
Não pagava aluguel nem luvas a ninguém!
Morava um dia aqui, um outro acolá
Leblon, Copacabana, Madureira ou Irajá!”
(Marcha do caracol, 1951, de Peter Pan e Afonso Teixeira). 

Ou, ainda, Daqui não saio (1950), de Paquito e Romeu Gentil:

“Daqui não saio
Daqui ninguém me tira
Onde é que eu vou morar?
O senhor tem paciência de esperar!
Inda mais com quatro filhos
Onde é que vou parar?”. 

As duras condições de vida da população mais pobre foram tratadas por meio de protesto social:

“Você conhece o pedreiro Valdemar?
Não conhece, mas eu vou lhe apresentar
De madrugada toma o trem da circular
Faz tanta casa e não tem casa pra morar
Leva a marmita embrulhada no jornal
Se tem almoço, nem sempre tem jantar
O Valdemar, que é mestre no ofício
Constrói o edifício e depois não pode entrar”
(Pedreiro Valdemar, 1949, de Roberto Martins e Wilson Batista). 

O recado era claro: os trabalhadores que, de modo geral, “faziam tudo” na sociedade, não usufruíam dos benefícios do seu trabalho. A crítica pode ser sintetizada, ainda, em Falta um zero no meu ordenado (1948), de Ary Barroso e Benedito Lacerda:

“Trabalho como louco
Mas ganho muito pouco
Por isso eu vivo sempre atrapalhado
Fazendo faxina
Comendo no ‘China’”. 

Com o excesso de trabalho sofria, por exemplo, a mulher do leiteiro:

“Todo mundo diz que sofre
Sofre, sofre neste mundo
Mas a mulher do leiteiro sofre mais
Ela passa, lava e cose
E controla a freguesia
E ainda lava as garrafas vazias
E o leiteiro, coitado!
Não conhece feriado
Se encontra satisfeito
Toda noite é sereno
E a mulher dele
Que trabalha até demais
Diz que tudo que ela faz
Ainda é café pequeno”
(A mulher do leiteiro, 1942, de Haroldo Lobo e Milton Oliveira). 

Se, por um lado, trabalhadores sofriam com a rotina pesada, a burocracia que compunha o aparelho de Estado usufruía de privilégios, a exemplo de um alto cargo (referido como “letra O”), em Maria Candelária (1952), de Armando Cavalcanti e Klecius Caldas, uma sátira a funcionários apadrinhados:

“Maria Candelária
É alta funcionária
Saltou de paraquedas
Caiu na letra ‘O’, oh, oh, oh, oh
Começa ao meio-dia
Coitada Maria
Trabalha, trabalha, trabalha de fazer dó oh, oh, oh, oh
A uma vai ao dentista
Às duas vai ao café
Às três vai à modista
Às quatro assina o ponto e dá no pé
Que grande vigarista que ela é”.

 

Cenas do cotidiano, novos costumes e influência norte-americana

Os motoristas de ônibus de hoje “sofrem” com as batucadas e a algazarra carnavalesca da mesma forma que os condutores de bondes – veículos preferidos pelos foliões – por volta de 1938, ano em que foi lançada Seu condutor, de Alvarenga e Ranchinho:

“Seu condutor, dim, dim
Seu condutor, dim, dim
Pare o bonde pra descer o meu amor
E o bonde da Lapa é cheio de chapa
E o bonde uruguaio duzentos que vai
E o bonde Tijuca me deixa em sinuca
E o Praça Tiradentes não serve pra gente”. 

A modernização e a verticalização urbana do Rio são referidas na famosa Aurora (1941), de Mário Lago e Roberto Roberti, que destaca alguns “símbolos de status” da época:

“Um lindo apartamento
Com porteiro e elevador
E ar-refrigerado
Para os dias de calor
Madame antes do nome
Você teria agora
Ô ô ô ô Aurora”. 

E qualquer novidade era satirizada. Nos anos 1920, a moda de calças largas com paletó justo e curto para os homens também deu o que falar:

“Essa gente de jaquetas bem curtinhas
Tem a cara bonitinha
Tem a cara bonitinha
Oh! Que turma esquisita e encrencada
Calça larga bem folgada
Rastejando na calçada”.
(Os calças-largas, 1927, de Lamartine Babo e Francisco Gonçalves de Oliveira). 

Até mesmo o acentuado declínio da taxa de nascimentos foi retratado, em Dona Cegonha (1953), de Armando Cavalcânti e Klecius Caldas:

“Ai, ai, ai, dona Cegonha
Saiu risonha
Voltou danada, encabulada
Com a Cegonha, ninguém quer nada, ai, ai, ai”. 

O cinema falado, a língua inglesa e a divulgação cada vez maior da música estrangeira marcavam a forte influência norte-americana – que não ficou de fora do repertório carnavalesco. Um exemplo é Alô, John (1933), de Jurandir Santos:

“Alô John
Cambeque pra folia
Se não reve mone
Não faz mal
Alô, ô, ô, ô
Alô John
Cambeque pra folia
Inde Brasil
Reve muito chope
Opp opp (bis)
American if drinque
Não estope”. 

Ou, ainda, do mesmo ano, Good bye, boy, de Assis Valente, que estourou na voz de Carmen Miranda, e criticava o excesso de americanismos na língua brasileira:

“Deixa a mania do inglês
É tão feio pra você
Moreno frajola
Que nunca frequentou
As aulas da escola
‘Good-bye, good-bye, boy’
Antes que a vida se vá
Ensinaremos cantando
A todo mundo
B e Bé, B e Bi, B a Ba
Não é mais boa-noite
Nem bom-dia
Só se fala ‘good morning, good night’
Já se desprezou o lampião
De querosene
Lá no morro
Só se usa luz da Light”. 

Também interpretada por Carmen Miranda, Yes, nós temos bananas (1938), de João de Barro e Alberto Ribeiro, foi uma resposta ao fox Yes, we have no bananas (1923), de Frank Silver e Irving Cohn.

 

A mulher, a cidade e a festa

Muitas marchinhas referiam-se ao próprio carnaval, à dança e à bebida, como Saca-Rolha (1953), de Zé da Zilda, Zilda do Zé e Waldir Machado:

“As águas vão rolar
Garrafa cheia eu não quero ver sobrar
Eu passo mão na saca saca saca-rolha
E bebo até me afogar”. 

Também versavam sobre a mulher, presente por seu nome próprio – Carolina, Maria Rosa, Amélia – ou pela beleza da loira, da morena e das tão exaltadas “mulatas”. Em 1947, Braguinha cantava:

“Branca é branca
Preta é preta
Mas a mulata é a tal, é a tal!”
(A mulata é a tal). 

E João Roberto Kelly compôs Mulata iê iê iê (1965), mais conhecida como Mulata bossa nova, em homenagem a Vera Lúcia Couto, primeira mulher negra a participar do concurso Miss Brasil.

Algumas marchas eram induzidas puramente pelas rimas e sons, pelo trocadilho e pelo duplo sentido. E outras tantas canções exaltaram a cidade do Rio de Janeiro. Não à toa, Cidade maravilhosa (1934), de André Filho, tornou-se o hino oficial da cidade, em 1960:

“Berço do samba e de lindas canções
Que vivem n'alma da gente
És o altar dos nossos corações
Que cantam alegremente”. 

Mesmo sem ter conseguido um retorno ao seu tempo áureo, as marchinhas permanecem no carnaval carioca e seus clássicos versos e melodias são repetidos a cada ano por arlequins, colombinas e pierrôs, que ainda pedem “um dinheiro aí” e zombam da pipa do vovô. A mensagem já fora dada em Sassaricando (1951), de Luis Antônio, Jota Junior e Oldemar Magalhães:

“Quem não tem seu sassarico
Sassarica mesmo só
Porque sem sassaricar
Essa vida é um nó”.

 

 

Fontes:

GALVÃO, Walnice Nogueira. Ao som do samba: uma leitura do carnaval carioca. São Paulo. Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.
ALENCAR, Edigar de. O carnaval carioca através da música. Rio de Janeiro. Rio IV Centenário. 1965.
http://origin.guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/marchinas-carnaval-retratam-historia-politica-sociedade-brasileira-689449.shtml
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-teu-discurso-nao-nega-racista
Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira
BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos meios populares de informação. EDIPUCRS, 2001.

 
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