Há alguns anos, a ideia do professor como único transmissor e detentor do saber vem perdendo força, crescendo, em seu lugar, o entendimento de que o aluno deve ser protagonista da construção de seu conhecimento. Com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) esse conceito foi intensificado, mas a pergunta que muitos se fazem é: como colocá-lo em prática? A MultiRio ouviu dois profissionais que trabalham com a Educação de Jovens e Adultos (EJA), no âmbito da Secretaria Municipal de Educação (SME), e eles ajudam a elucidar a questão.
Antes, é preciso entender as especificidades do Programa de EJA (Peja) levado a cabo pela SME. Uma delas é que a maioria de seus alunos abandonou o ensino formal na faixa etária de 7 a 14 anos, seja por sucessivos fracassos na trajetória escolar ou por abandono dos estudos pela necessidade de trabalhar para o sustento. O fato de se sentirem defasados interfere na maneira como voltam à escola. A maioria desses estudantes tem baixa autoestima, duvida de sua capacidade de aprendizagem e menospreza, ou até mesmo nega, os conhecimentos acumulados no decorrer da vida.
Quem diz isso é a coordenadora pedagógica do Centro Municipal de Referência de Educação de Jovens e Adultos (Creja), Priscila Oliveira. Segundo ela, não são poucos os que chegam ao programa dizendo que não sabem ler e escrever, mas que, conforme o tempo vai passando, os professores vão constatando que muitos deles conhecem os códigos da escrita e da leitura.
O professor Daniel de Oliveira, doutorando da Uerj que trabalha na Gerência de EJA (Geja), uma das unidades do nível central da SME, entende que a negação do que sabem é fruto não só da baixa autoestima, mas também uma consequência do medo de não conseguirem vencer a história que os impossibilitou de estudar. Por outro lado, voltam à escola porque querem aprender, pois tem consciência de que o fato de não terem cursado o Ensino Fundamental os limita e os exclui de muitas oportunidades.
Valorizando os diversos saberes
A coordenadora pedagógica do Creja explica que esses fatores são determinantes na condução do processo de aprendizagem, tanto no ensino presencial como remoto: “Esse comportamento requer do educador uma maior preocupação com a contextualização das propostas escolares em relação às experiências dos alunos”. Ou seja, é fundamental que os professores valorizem o aprendizado oriundo da vivência dos estudantes para que eles se percebam como pessoas capazes, que têm habilidades.
“Ninguém chega à EJA vazio, todos possuem saberes. Muitos adultos, por exemplo, constituíram e sustentaram suas famílias, casa, orientaram filhos a uma formação acadêmica. Ajudá-los a olharem para esses feitos contribui para que se sintam sujeitos empoderados”, afirma Daniel de Oliveira.
Outro aspecto relevante, segundo a coordenadora pedagógica do Creja, é o desenvolvimento da autonomia do estudante. Na frase “Maria saiu para fazer compras”, muitos alunos recém-chegados não conseguem responder à pergunta “Por que Maria saiu?”. Por isso, o desenvovimento da oralidade se torna uma chave para o sucesso escolar deles, pois estimula o desenvolvimento da capacidade argumentativa. A promoção de debates, por exemplo, é uma maneira de fazê-los expor argumentos que, depois, facilitarão a construção e a fundamentação da escrita.
Entre os possíveis debates, Daniel de Oliveira acredita que um dos mais importantes é o que indaga sobre a experiência de cada um com a leitura e a escrita: "O mundo possui escritas por toda a parte, assim como todos têm leituras de mundo. O professor pode mediar essa discussão, indagando que experiências são essas”.
Oralidade e processo educativo
Para Daniel de Oliveira trabalhar com a oralidade é um meio muito eficaz para pôr em prática o conceito de que o estudante deve ser o centro do processo de aprendizagem. "Todos trazem consigo diversas narrativas orais acerca de suas experiências. Trabalhar com elas possibilita que o professor saiba mais sobre seus alunos, perceba a diversidade linguística e cultural de sua turma, conheça as tradições orais e os conhecimentos que são difundidos por elas”, diz.
O desenvolvimento da oralidade junto aos alunos ainda permite que os professores percorram diversos caminhos, como, por exemplo, debater os gêneros narrativos, propor exercícios de escrita coletiva e individual como meio de registro e de comunicação de sentimentos, pensamentos, saberes etc. “Desenvolver projetos a partir de histórias de vida é um exemplo de trabalho pedagógico que parte da oralidade para o registro escrito”, explica o professor.
Durante a pandemia
De acordo com Priscila Oliveira, durante a pandemina de Covid-19, as escolas inseridas no PEJA têm desenvolvido propostas de trabalho voltadas para a oralidade, leitura e escrita por intermédio das redes sociais. Músicas, imagens e textos são disponibilizados, principalmente nos grupos de WhatsApp das turmas , com propostas de debate a partir de temas do cotidiano atual.
Os estudantes do Peja têm interagido como e quando podem por meio de mensagens de texto, áudio ou vídeo, embora as dificuldades sejam muitas. Os alunos são pobres e lutam pelo sustento e pela sobrevivência em meio à crise econômica e sanitária. Além disso, costumam não ter equipamentos digitais adequados e, não raro, o sinal de internet mal chega na área onde moram. Mas, como lembra Daniel de Oliveira, a área de Educação, embora viva as consequências das desigualdades sociais, precisa acolher seus estudantes.
A coordenadora do Creja acredita que as ações educativas realizadas durante a pandemia permitem que o vínculo entre escola, professor e aluno permaneça ativo, mas observa que, na maioria das vezes, não suprem todas as necessidades do processo de ensino. Ainda que a situação não seja a ideal, ela lembra de uma frase de Paulo Freire, mundialmente reconhecido por suas contribuições à educação popular: “O mundo não é. O mundo está sendo”. Continuar tentando que o barco chegue ao seu destino é preciso. Mesmo sob condições adversas.