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Ordens religiosas foram as maiores proprietárias de terras no Rio de Janeiro do século XVI ao XIX
04 Maio 2016 | Por Larissa Altoé
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VistaMosteiroSaoBentodebretlegendadaCom a chegada dos portugueses ao Brasil, as ordens religiosas – jesuítas, beneditinos, carmelitas e franciscanos – tornaram-se as grandes proprietárias de terras no Rio de Janeiro. O modo como lidaram com a terra e a população moldaram a cidade. Fania Fridman, doutora em Economia Política, professora e pesquisadora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, dá detalhes da gênese da capital carioca sob a ótica urbanística, no livro Donos do Rio em Nome do Rei: uma História Fundiária da Cidade do Rio de Janeiro.

Para a professora, a propriedade fundiária determina a paisagem, isto é, da relação entre o homem e o espaço surge um tipo de lugar que vai se transformando ao longo do tempo. A partir dessa perspectiva, Fridman conta que jesuítas, beneditinos, carmelitas e franciscanos estabeleceram-se no Rio ainda no século XVI e prosperaram por aqui até o final do século XIX. “A relação visceral entre Igreja, Estado e povo, que nem sempre era tão pacífica quanto se pretendia, teve vigência no Brasil até a República.”

Naqueles tempos, a Igreja era responsável pela administração e pelo poder espiritual nas terras conquistadas por Portugal, e tinha o direito de receber o dízimo eclesiástico de todos os produtos da terra – o dízimo de Deus.

A Igreja moldava o espaço e as relações

O Concílio de Trento (1545 a 1563) e as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1719) influenciaram o modo como foram edificadas as cidades coloniais. As Constituições, por exemplo, recomendavam que as construções sagradas estivessem em lugares decentes – em sítios altos e livres de umidade. Se já houvesse ocupação na vila, as igrejas deveriam se instalar onde pudessem passar as procissões. Uma das funções dos adros das igrejas – área livre em frente das construções – era tornar-se refúgio para foragidos. Além disso, os religiosos cuidavam da comida e da saúde da população: suas hortas e pomares abasteciam as casas cariocas e o hospital Santa Casa de Misericórdia foi construído a mando dos jesuítas, entre 1567 e 1582.

“Os religiosos foram responsáveis por grande parte dos referenciais diários da população carioca. Na habitação, com a construção e o aluguel de moradias; na saúde, com hospitais, boticas (farmácias), médicos e enfermeiras; com a produção de alimentos nas suas fazendas e engenhos; na educação, com escolas; na cultura, através do teatro, das artes plásticas, da música e do lazer (as procissões eram o maior divertimento no Rio colonial); nos melhoramentos urbanos, com a construção de pontes, chafarizes, abertura de ruas e saneamento; com o fornecimento de água (com os seus poços) (...); nos empréstimos e na guarda de dinheiro e bens (...).”

A Companhia de Jesus

Até serem expulsos da cidade (e de todas as terras pertencentes a Portugal), em 1759, os jesuítas foram os maiores proprietários de terras: todas desde o Rio Catumbi até Inhaúma – “a sesmaria do Iguaçú e suas águas”. Eram beneficiados pela Coroa e, por isso, tiveram inúmeros privilégios para se instalarem: dispensa do dízimo sobre a utilização de suas terras; prazo maior para aproveitamento das áreas doadas em sesmarias (dez anos, enquanto para os demais estava estabelecido em três anos); além de seus navios não serem vistoriados pelo juiz da Alfândega.

Os padres da Companhia usavam o transporte marítimo e fluvial nos deslocamentos entre suas fazendas, sobretudo entre o Colégio, no Morro do Castelo, e Santa Cruz, onde produziam açúcar, farinha de mandioca e cal. O Rio Comprido, por exemplo, era navegável e atravessava as propriedades do Engenho Velho, Engenho Novo e São Cristóvão, desaguando no saco de São Diogo – região que ia do Morro da Providência à Praça Onze (denominações atuais) –, constituindo-se em um porto importante.

Outra sesmaria recebida pelos loyolistas, doada a eles ainda no século XVI, foi a Fazenda de Santa Cruz, produtora de farinha, anil, arroz, açúcar e carne, além de artefatos de oficinas diversas. Esses bens eram escoados pelos rios Guandu e Itaguaí ou pelos canais do Itá e de São Francisco até a Baía de Sepetiba, no porto da Ilha da Madeira, de onde seguiam para o núcleo central da cidade, por mar. Os canais eram artificiais, obras avançadas de engenharia construídas pelos padres.

Meios fluvial e marítimo eram os mais usados

As relações no Rio de Janeiro colonial se davam, principalmente, porto a porto, isto é, do porto local (da fazenda, do engenho) e/ou fluvial ao porto da cidade. Os portos eram privados porque as terras haviam sido doadas como sesmarias.lgodopacoatualpcaxvcaisdebret

A produção dos engenhos, enviada à metrópole, e os gêneros alimentícios das chácaras dos arredores, consumidos pela população urbana, chegavam, em pequenos botes, ao porto da Praia da Piaçava ou de Santa Luzia (hoje, Rua Santa Luzia), na base do Morro do Castelo. O Porto dos Padres da Companhia de Jesus, privado, que também ficava na área central da cidade, foi o primeiro dotado de facilidades portuárias – tinha um guindaste, que também era alugado a terceiros.

O deslocamento de pessoas e produtos no Rio colonial era baseado na tradição indígena de transporte por canoas, devido aos precários caminhos terrestres, que inundavam em época de chuvas. Desde 1630, havia liteiras, redes e serpentinas para pequenos percursos, mas os veículos com roda só apareceram em meados do século XVII. O desenvolvimento agrícola no final do século XVIII, nas freguesias localizadas na direção oeste da cidade, pode ser avaliado pela existência de 23 portos.

Beneditinos

Os beneditinos possuíam engenhos em Camorim, Vargem Grande e Vargem Pequena e também criavam gado. Além de açúcar e carne, produziam anil e material de construção, como tijolos, telhas e madeira. Esses bens chegavam ao porto central do Rio pelo mar, embarcados em Sernambetiba, ou por caminhos fluviais – rios Meriti e Irajá.

Eles também ocupavam a área entre a encosta do Morro da Conceição e o Morro de São Bento. No Morro de São Bento, havia água potável, material para a construção das primeiras casas, uma roça de algodão, além de uma horta que foi, durante muito tempo, o celeiro do novo estabelecimento urbano.

Pertencia a eles também a pedreira localizada no que hoje é conhecido como Morro da Viúva, em Botafogo. Na principal artéria urbana da época, a Rua Direita, atual Primeiro de Março, os beneditinos mandaram construir casas para aluguel. De 1751 a 1850, na área central do município, a Ordem de São Bento acumulou mais de 200 casas de aluguel, 29 terrenos foreiros, pelo menos dois prédios, um armazém e sete lojas.

IgrejaOrdemTerceiraCarmo1870Carmelitas

Os carmelitas receberam em doação a região da atual Praça Quinze. Em 1797, possuíam uma centena de propriedades, incluindo dois engenhos e sete fazendas. Na área central, entre 1718 e 1858, seu patrimônio era composto por casas, sobrados e terrenos nas ruas do Rosário, da Alfândega, do Sabão, do Hospício, Estreita de São Joaquim, do Carmo, Nova do Ouvidor, Direita e Bragança.

Franciscanos

Aos franciscanos coube o Morro do Carmo, que passou a se chamar de Santo Antônio. Fizeram um convento, uma horta e um pasto. Até o século XVIII, essa região ficava fora das portas da cidade, em uma área considerada suja e mal frequentada até as primeiras décadas do século XIX. Os franciscanos eram estimados pelo povo porque davam abrigo aos indigentes e ofereciam educação no convento.

As ordens religiosas obtinham recursos por meio de aforamentos e arrendamentos de parcelas de terra no campo e dos aluguéis das moradias na cidade. Essas casas de aluguel eram o único meio de obtenção de um lugar para morar por parte da população não nobre.

Todas as pessoas com posses pertenciam às ordens terceiras e às irmandades por motivos religiosos, agregativos (em razão do ofício que exerciam, por exemplo) ou pelos sepultamentos. Até fins do século XVIII, a cidade era iluminada pelos lampadários em frente aos edifícios religiosos ou aos nichos e oratórios, nas esquinas das ruas. Igrejas e capelas eram locais de busca de notícias tanto para ricos como para pobres. Os sinos assinalavam nascimentos, mortes e incêndios – muito comuns na época.

O Marquês de Pombal e a política anticlerical

Na segunda metade do século XVIII, o governo português, liderado pelo Marquês de Pombal, começou a controlar estritamente o patrimônio religioso em suas colônias. Os religiosos foram obrigados a enviar listas completas de suas propriedades e proibidos de efetuar qualquer transação imobiliária sem a autorização do Rei José I. Tal controle culminou com a expulsão e sequestro dos bens dos jesuítas, cujas terras agrícolas e urbanas foram vendidas em leilão ou incorporadas ao patrimônio real.

É dessa época o retalhamento das chácaras nas direções sul e norte da cidade do Rio. A partir desse período, o rei tornou monopólio do Estado inúmeras atividades, como os serviços urbanos e a venda de carne, que se transformaram em concessões ou arrendamentos do Estado. No século XIX, a abertura de caminhos passou a ser atributo do governo e iniciou-se a laicização da educação.

A prática de doação de sesmarias foi suspensa em 1822 e a Lei de Terras, instituída em 1850, consolidando legalmente a propriedade privada. Formou-se, então, um mercado capitalista de terras. As sesmarias cujos foreiros não preenchessem as condições legais ou que se encontravam vazias eram vendidas.

Com a proclamação da República, em 1889, a Igreja se separou do Estado, e as ordens religiosas transformaram-se em sociedades administradoras de seus bens. Os beneditinos, ao contrário dos jesuítas, conseguiram conviver de forma diplomática com o governo português, mesmo após a política pombalina. Parte de seus bens resiste até os dias atuais na cidade. De acordo com o levantamento feito por Fania Fridman, de 1950 a 1992, o patrimônio beneditino na área central consistia em duas casas e sobrados, 23 prédios, 70 salas de escritórios, 51 lojas, quatro armazéns, dez terrenos, 21 andares em prédios comerciais e três apartamentos.

 
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