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Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: o que ela mudou e sua influência hoje
26 Agosto 2020 | Por Márcia Pimentel
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Abertura, por Luís XVI, da Assembleia em que os representantes do povo decidiram transformá-la em Assembleia Constituinte, marcando o início da Revolução Francesa. Óleo sobre tela, 1839. Musée National du Château et des Trianons, dp

Não tem sido raro, hoje em dia, deparar-se com a crítica de alguns segmentos da população à Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, por unanimidade dos países. A DUDH tem origens relacionadas à ascensão da burguesia e do pensamento liberal, nos séculos XVII e XVIII e é inspirada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (DDHC), aprovada pela Assembleia Nacional Francesa, em 26 de agosto de 1789, em plena Revolução Francesa. O documento contou com o amplo apoio popular e a total adesão da burguesia da época que, para continuar progredindo, precisava derrubar o Antigo Regime e instituir transformações na organização do Estado e nas estruturas jurídicas, econômicas e sociais. Provavelmente, uma boa parte dos críticos da DUDH voltassem atrás, se soubessem como eram os direitos antes da publicação da DDHC.

Segundo artigo do sociólogo Roberto Carlos Simões Galvão, a primeira Declaração de Direitos foi publicada, em 1776, pelos Estados Unidos, inspirada no pensamento liberal e nos ideais iluministas e humanistas que floresciam na Europa, especialmente na França e na Inglaterra. Sua primeira cláusula proclamava a igualdade e a liberdade de todos os indivíduos. Baseada nos mesmos princípios filosóficos e jurídicos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão promoveu, contudo, impacto bem maior, em função de toda a repercussão que a Revolução Francesa teve na Europa e em suas colônias ultramarinas.

A publicação da DDHC abalou as estruturas do absolutismo europeu. O estatuto da igualdade deu fim ao princípio de que os reis eram indicados por Deus e que os servos deveriam se resignar com a vontade divina, servindo aos seus senhores. O ideal da liberdade, aliás, levou a Revolução Francesa a ter o amplo apoio dos camponeses e camponesas. O estatuto da liberdade atingiu não apenas o indivíduo, mas também a economia. Os burgueses não precisavam mais se submeter aos interesses econômicos da Corte e sim aos princípios do livre mercado e comércio. Esses novos princípios desencadearam movimentos revolucionários por toda a Europa, além de guerras pela independência nas colônias por todo o século XIX.

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Marcha das Mulheres contra a carestia e o preço do pão, em direção ao Palácio de Versailles. Biblithèque Nationale de France, dp

A DDHC também inspirou a constituição nacional dos países, como a que vigorou na Alemanha entre o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1919, e o início do regime nazista, em 1933, período conhecido como República de Weimar. Dizem vários juristas que essa constituição foi fundamental para a reafirmação dos direitos fundamentais do cidadão pela ONU, após o fim da Segunda Guerra Mundial e consequente derrota do nazifascismo. É visível, portanto, que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, serviu de fonte de inspiração para a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Basta compará-las. O primeiro artigo da DDHC, por exemplo, diz que "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos" e o da DUDH, que “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.

Direitos: antes e depois da DDHC

De acordo com o advogado Rogério Machado Mello Filho, antes da Revolução Francesa e da aprovação da DDHC, vigorava na Europa e em suas colônias o Direito Penal Medieval, caracterizado por sua crueldade e pelos amplos poderes dos juízes, que podiam, inclusive, aplicar penas não previstas em lei. Como os julgamentos não precisavam obedecer aos princípios da legalidade, nem a critérios de proporcionalidade da pena – mas apenas à subjetividade do juiz – não havia segurança jurídica para as pessoas. Some-se a isso, as práticas de tortura, que tinham o objetivo de fazer os acusados confessarem a autoria de determinado crime, ou promoverem o sofrimento dos condenados à morte.

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Alguns intrumentos medievais de tortura. Gnu Free/Wikimedia commons

No amplo repertório de técnicas de flagelação dos acusados estavam a roda da tortura (onde a pessoa tinha mãos e pés amarrados a um círculo de madeira e recebia marteladas pelo corpo); o esmaga-cabeça (em que o acusado tinha a cabeça colocada entre duas barras de ferro que iam se comprimindo, destruindo, pouco a pouco, a arcada dentária e os globos oculares e esmigalhando a massa cefálica); a serra da tortura (em que o réu, pendurado de cabeça para baixo, era paulatinamente serrado ao meio) ... As penas arbitradas pelos juízes também impunham dor e humilhação aos homossexuais e às mulheres adúlteras, que tinham um objeto de ferro, em forma de pera, introduzido no ânus ou na vagina, e cujas pétalas iam se abrindo ao menor movimento.

Rogério Machado Mello Filho explica que tanto o Direito Penal na Idade Média como as práticas de tortura eram frutos dos privilégios da nobreza e do alto clero. A primeira relação sexual da mulher de um camponês, por exemplo, deveria ser com o senhor feudal. Do contrário, ela e o marido sofreriam a pena de morte. Por meio dos Tribunais Eclesiásticos, os inquisidores da Igreja aplicavam penas de desorelhamento, castração, extração dos seios femininos, amputação do nariz, morte na fogueira ...

Com a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, a tortura passou a ser veementemente recusada, assim como as confissões de crime por meio de tal prática. Não apenas por ferir a dignidade humana, mas também porque qualquer pessoa pode confessar um crime que não praticou para cessar a dor da tortura e evitar a própria morte. A DDHC, enfim, surgiu como instrumento para coibir os abusos contra a dignidade humana, assim como todo o pensamento jurídico que a ampara buscava restaurar a legalidade dos julgamentos e a proporcionalidade das penas.

Questões contemporâneas

Na comemoração dos 60 anos da DUDH, a Agência de Notícias do Supremo Tribunal Federal (STF) adotou a visão do filósofo e jurista italiano Norberto Bobbio acerca da questão dos direitos humanos. Para Bobbio, as constituições dos diversos países, de forma geral, refletem momentos centrais de conquistas que consagram as vitórias do cidadão sobre o poder, muito embora ainda se lute para que direitos fundamentais sejam garantidos de forma definitiva, “como sonhou o otimismo iluminista”. O italiano ainda alerta que as ameaças a tais direitos não vêm somente do Estado, mas também da sociedade.

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Crianças observando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, poucos dias após sua aprovação, em 1948. Arquivos da ONU, dp

Segundo o sociólogo Roberto Carlos Simões Galvão, no Brasil, o autoritarismo promove frequentes violações até mesmo aos direitos mais básicos. Nos dias atuais, o país ainda se depara com práticas de trabalho escravo, só para citar um exemplo. “Basta correr as páginas dos jornais para perceber que o desrespeito aos direitos humanos continua sendo uma realidade flagrante no Brasil”, diz.

Vale também lembrar que em seu livro A era dos direitos, Norberto Bobbio afirma que os direitos são históricos, nascidos em certas circunstâncias e caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes. Ou seja, os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. E da mesma forma que novas reivindicações costumam entrar em pauta conforme as condições históricas vão se transformando, segmentos conservadores e autoritários da sociedade podem até mesmo cassar direitos já conquistados.

 
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