Os Parâmetros Curriculares Nacionais orientam a abordagem desses temas em uma perspectiva pedagógica transversal, estimulando educadores a romper as barreiras simbólicas de suas respectivas áreas de conhecimento na escola. Nesse sentido, a disciplina de Educação Física oferece um campo fértil de conteúdos a serem desenvolvidos na Educação Básica, em especial no segundo segmento do Ensino Fundamental.
No campo de valores e atitudes, vamos sugerir atividades lúdicas e esportivas que estimulem debates e reflexões sobre o respeito às diferenças de habilidades intelecto-motoras, religiosas, de compleição física, de orientação sexual e àquelas provenientes de deficiências físicas e/ou intelectuais. Serão propostas, ainda, vivências de jogos e de esportes em que ocorrem mais notadamente situações de discriminação, para que as diferentes características dos praticantes desses jogos e esportes sejam valorizadas, naturalmente sem prejuízo da qualidade e da eficiência da execução.
Com essa estratégia pedagógica, pretende-se não somente ressaltar a importância do respeito às diferenças, mas também transmitir aos alunos valores éticos universais, para além dos muros escolares.
Respeito às diferenças
Tradicionalmente, é creditada à disciplina de Educação Física, tanto no interior da escola como fora dela, a tarefa de desenvolver nos alunos competências de naturezas similares às originadas em afirmações clássicas como: “através dos jogos e esportes, o aluno aprenderá a respeitar regras e a ser disciplinado”; “o aluno, por intermédio do esporte, deverá saber lidar com a vitória e com a derrota”; “os jogos e os esportes contribuirão para os alunos respeitarem as diferenças entre as pessoas”; e outras. Há verdades e exageros nas afirmações. Mas abemos que os mesmos esportes/jogos que podem ser indutores de posturas solidárias e de atitudes civilizadas também podem levar a processos severos de exclusão, de agressão e, principalmente, de preconceitos de diversas ordens – gênero, orientação sexual, etnia, opção religiosa, habilidade intelecto-motora, etc. Isso é percebido nos ambientes em que se realiza o esporte de alto rendimento ou de alto nível e, igualmente, no cotidiano de nossas escolas, seja nas aulas de Educação Física, seja nos eventos esportivos.
A soberania do vitorioso sobre o derrotado; a escolha dos mais habilitados para compor as equipes; a supervalorização do alto rendimento em detrimento do lúdico; e a rigidez de regras impostas, que inibem a construção coletiva, formam um conjunto de fatores que caracteriza o esporte, mas dificulta sua utilização como ferramenta pedagógica para trabalharmos temas importantes, entre os quais inclusão, tolerância, respeito às diferenças e solidariedade.
Outras práticas corporais, como as lutas, as diferentes modalidades de ginástica e as danças, também podem contribuir tanto para a inclusão quanto para a exclusão de crianças, adolescentes e jovens, por não se enquadrarem em um perfil de bons executores em atividades escolares – nas aulas de Educação Física, em festivais culturais, em mostras, etc.
Muitas vezes, mesmo sem querer excluir, os próprios professores expõem os alunos a grandes frustrações, como acontece em apresentações de dança, nas quais selecionam os mais talentosos de suas turmas, e na própria organização coreográfica, quando os menos habilidosos ficam atrás, no fundo do palco. Diante desses exemplos, a escola e, em particular, a disciplina de Educação Física podem constituir-se em espaços em que a prática de esportes, jogos, danças, ginásticas e lutas seja uma forte aliada na construção de novos conhecimentos para os alunos e, principalmente, na consolidação de valores essenciais que fomentem relações humanas mais fraternas e respeitosas.
Um espaço privilegiado
Alguns conteúdos classificados, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, MEC, 1997), como de natureza atitudinal, como: inclusão, tolerância, respeito às diferenças, solidariedade, etc, sugeridos para serem tratados, pedagogicamente, de maneira transversal, encontram na disciplina de Educação Física a potencialidade para abordá-los por intermédio de outros conteúdos previstos em seu currículo.
Isso acontece pelo fato de as aulas se darem, na maioria das vezes, em um ambiente diferente do da sala de aula tradicional, caracterizada pela organização das cadeiras em fileiras separadas e pela imobilidade dos alunos.
Na Educação Física, os estudantes realizam tarefas individuais ou coletivas com o corpo e têm necessidade frequente de se organizar em equipes para determinadas atividades, o que possibilita diferentes vivências, entre elas exercitar o respeito às diferenças de diversas ordens, a tolerância, a capacidade de ouvir e a tomada de decisões em grupo, entre outras.
Mas não é o bastante. Essas vivências precisam da presença ativa do professor, criando situações que provoquem a reflexão e o debate, mas que não gerem expectativas inatingíveis ou frustrações demasiadas nos alunos. Como sugestão de atividades, que separarmos para falar neste artigo, serão priorizados os conteúdos para as faixas entre 10 e 15 anos que possibilitem, de maneira diversificada, a abordagem dos temas propostos aqui.
Futsal
Como todo jogo ou esporte coletivo, o futsal demanda a formação de equipes para sua execução. Porém, que critérios adotar na montagem dos times? Como evitar a superexposição de um aluno pouco habilidoso? Como garantir que nem os mais nem os menos talentosos saiam frustrados do jogo?
O grande desafio, sem dúvida, será o de fazer com que eles compreendam como direito universal o acesso aos conhecimentos produzidos pela humanidade (o futsal é um deles). Portanto, quem desejar pode aprender a jogar essa modalidade de esporte sem sofrer constrangimentos em razão de sua condição física, sua orientação sexual, sua habilidade, sua origem socioeconômica, sua etnia ou mesmo por ser, eventualmente, portador de alguma deficiência.
Para desenvolver atividades esportivas de natureza coletiva e que dialoguem de maneira produtiva com os princípios da tolerância e da diversidade, deve-se começar pelo conceito de tática. Segundo o historiador e sociólogo francês Michel de Certeau, “táticas são iniciativas tomadas pelos indivíduos como reação ao poder instituído (que ele chama de estratégias), utilizando-se das brechas existentes no interior desse sistema para obter êxitos temporários”. A afirmação nos leva a desmistificar a tática como privilégio de poucos, geralmente, os técnicos esportivos e os comandantes das grandes batalhas.
A partir desse conceito, vamos estimular que os alunos se organizem taticamente para o futsal, de forma que suas equipes, mesmo compostas de maneira heterogênea, ou seja, contando com indivíduos tão diferentes em habilidade, força física, sexo, etc., consigam resultado. E, quando não conseguirem, que encontrem meios/táticas, sem discriminação, intimidação, exclusão ou opressão, para se reorganizar e tentar novamente. Parece simples, mas, na verdade, os professores de Educação Física lidam com turmas que aprenderam, fora da escola, conceitos como “no esporte sempre vence o melhor” e que, para isso, deve-se eliminar qualquer impedimento, inclusive os colegas de turma que não sabem jogar.
Frescobol e peteca
Existem duas diferenças importantes entre a prática do futsal (ou de qualquer outro jogo/ esporte coletivo) e o frescobol e a peteca, além do tipo de material utilizado e da quantidade de jogadores. A primeira delas refere-se a um hábito cultural que popularizou o frescobol e a peteca como jogos de praia, e, portanto, quem mora longe do litoral (a maioria da população carioca) não pratica nem um nem outro. A segunda diferença está ligada à lógica dos jogos: tanto no frescobol como na peteca há uma intenção permanente de colaboração entre os jogadores. Se isso não acontece, a bola ou a peteca cai no chão e a atividade é descontinuada.
Diante das características distintas do frescobol e da peteca em relação ao futsal, os conteúdos a serem trabalhados nas aulas de Educação Física precisam ter como objetivos principais romper com a herança cultural que relaciona as duas atividades à praia e provocar nos alunos reflexões sobre a importância da valorização do outro como elemento essencial para o aprendizado de cada uma delas. Dessa forma, a relevância do jogar “com o outro”, e não “contra o outro”, deve permear toda a ação educativa que se pretenda desenvolver.
Hip-hop
Desenvolver o conteúdo da dança sempre foi um grande desafio para os professores de Educação Física. Além da falta de espaços e de equipamentos nas escolas, a própria formação acadêmica desses professores, geralmente muito esportivizada, não oferece muitos subsídios para eles tratarem, pedagogicamente, uma prática corporal construída e aprimorada pela humanidade. E que, por isso mesmo, deveria estar presente nos programas escolares da disciplina.
Existe, ainda, uma resistência dos alunos (principalmente os meninos) em se expor, no ambiente escolar (acontece bem menos nos bailes e nas festas), às vivências rítmicas que fazem parte do conteúdo da dança.
A situação é agravada até pela questão espacial das quadras e dos pátios das escolas, usados normalmente para a Educação Física e que se localizam, geralmente, em espaços devassados, sem paredes ao redor. Apesar disso, a dança (e suas modalidades) constitui-se em um conteúdo forte no interior da escola. Além de agregar conhecimentos ao repertório cultural dos alunos, é um espaço de reflexão sobre os preconceitos em relação à compleição física, à orientação sexual, à habilidade, à deficiência física e outros. Na história da dança, encontra-se um universo amplo e diversificado de ritmos e de movimentos que expressam crenças, hábitos, formas de convivência, enfim, culturas que se perpetuam e se modificam a partir dessa prática corporal. Nesse universo, o hip-hop destaca-se como um conteúdo fértil a ser desenvolvido com alunos do 6º ao 9º ano de nossas escolas municipais.
Exatamente por a dança no hip-hop ter como sua maior marca o improviso, foi identificado um potencial para o trabalho com grupos de alunos que apresentam diferentes níveis de habilidades, ritmos, gostos, desejos, composições físicas, etc. A inexistência, nas danças de rua, de rígidos padrões de performance e de execução, presentes em outras modalidades, é um elemento facilitador para atrair alunos que, tradicionalmente, se recusam a participar de atividades dessa natureza. Outro dado positivo é que o hip-hop e outras danças de rua foram incorporados aos hábitos culturais de parcelas significativas de crianças, a adolescentes e jovens do Rio de Janeiro e de todo o Brasil.
Pelas características mencionadas, o professor de Educação Física, em seu planejamento de ensino, terá melhores condições de desenvolver o conteúdo da dança através do hip-hop e de sublinhar, em sua ação pedagógica, a importância da valorização e da tolerância com o diferente.
Dica para o professor
Promover uma Feira Cultural na escola em que se apresentem as turmas que trabalharam com dança. As coreografias seriam elaboradas por todos os alunos (através de um trabalho conjunto), que criariam suas performances individuais ou em grupos, a partir do que foi apreendido. Dessa forma, todos teriam oportunidades e condições efetivas de se apropriar, de maneira lúdica, de um conhecimento novo, respeitando as limitações e as potencialidades de cada um.
Bibliografia básica
ALVES, Rubem. Tênis x Frescobol. In: O Retorno e Terno. São Paulo: Papirus, 1992.
BRASIL, MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais: Introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC – SEF, 1997.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis (RJ): Ed. Vozes, 1994.
GADOTTI, Moacir. Educação e Poder: Introdução à Pedagogia do Conflito. São Paulo: Cortez, 1985.
Sites:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hip_hop
http://educacao.uol.com.br/cultura-brasileira/ult1687u12.jhtm
www.brasilescola.com/educacaofisica/frescobol.htm
Luiz Otavio Neves Mattos é professor de Educação Física e titular do Conselho Municipal de Educação.
Artigo extraído do fascículo Quem Disse que Estou Só Brincando?, da MultiRio.