Desde 2003, com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação das Relações Étnico-Raciais, o ensino da história e da cultura afro-brasileira se tornou obrigatório nas escolas do país. Embora essa orientação tenha sido reforçada pela Lei nº 11.645, de 2008, a maioria da população continua sabendo muito pouco sobre os povos e as nações que formaram o imenso contingente populacional negro e mestiço do Rio de Janeiro – que foi, segundo os historiadores, a maior cidade escravista das Américas.
A fim de endossar as novas orientações curriculares e promover um maior contato dos cariocas com a riqueza histórica, econômica e cultural que envolve a relação da cidade com o continente africano e seus habitantes, a MultiRio dá início, aqui no Portal, à série Matrizes Negras do Rio. O ponto de partida dessa jornada são os povos da etnia banto que habitavam a chamada região africana de Congo-Angola (situada ao norte e ao sul do Rio Zaire) e que se constituíram no principal grupo de escravos traficados para nossa cidade, até o século XIX.
Os primeiros contatos
Para melhor entender as estreitas relações que o Rio construiu com a África, principalmente com Angola, é preciso compreender como elas foram estabelecidas. Quando o português Diogo Cão chegou à foz do Rio Zaire, no Congo, em 1483, a região era formada por diversas províncias. Elas compunham um reino forte e eram chefiadas por um mani (rei), auxiliado por um conselho de nobres, dividido por atribuições: militares, jurídicas, de coleta de impostos etc. O governo central era exercido a partir da capital mzamba Kongo – posteriormente rebatizada de São Salvador pelos lusitanos – e a unidade da confederação era mantida pelo monarca com o apoio das linhagens nobres, que estabeleciam alianças entre si por meio de casamento e relações comerciais.
A nobreza vivia nas cidades do reino congolês e utilizava mão de obra escrava na exploração das minas de sal e de metais, no cultivo agrícola de suas terras e no trabalho doméstico (destaque para as escravas concubinas, que geravam filhos para o clã masculino, diferentemente dos casamentos entre as linhagens, que geravam filhos para o clã feminino). Os cativos também formavam o exército real e eram resultado das capturas em guerra e das sanções contra os aldeões.
Quando os portugueses ali chegaram, encontraram não só uma sociedade estruturada, mas também diversos mercados regionais, que cresceram com o estreitamento das relações com os lusos. Além do estabelecimento de um comércio internacional, os reis de Portugal e do Congo trocaram embaixadas, que permitiram que um e outro reino firmassem contatos linguísticos, culturais e religiosos. Um dos frutos desse intercâmbio foi a conversão do rei do Congo e de outros nobres ao catolicismo, em 1491.
O primeiro mani convertido, batizado de dom João I, sofreu grandes pressões por uma parte da nobreza, que não aceitava a nova religião e resistia em aceitar a monogamia, já que a rede de casamentos era fundamental para o estabelecimento de alianças. Após sua morte, iniciou-se uma luta sucessória, até a ascensão de dom Afonso I, filho de João, que reinou entre 1506 e 1543 e promoveu um verdadeiro aportuguesamento das instituições políticas do reino, a ponto de os nobres passarem a ser intitulados conde, visconde, duque, marquês... Essa política rendeu bons frutos ao mani, pois mzamba Kongo, cidade de onde ele governava, tornou-se entreposto obrigatório para a importação e exportação de mercadorias e escravos. E esse foi um dos elementos que estabeleceram as condições para a colonização do Brasil, assentada no tráfico negreiro e na cultura da cana-de-açúcar.
Rio em guerra na África
Durante a unificação das coroas portuguesa e espanhola, entre 1580 e 1640, alguns colonos brasileiros conquistaram contratos de Asiento que lhes concediam o direito de explorar rotas do comércio com a África. Diferentemente dos traficantes portugueses, que preferiam comercializar em feitorias, os brasileiros optaram por adentrar o território angolano, onde podiam praticar o escambo longe do sistema de vigilância e de monopólio do rei congolês. Acabaram, assim, segundo o etnógrafo Jon Vansina, construindo “uma rede comercial impressionante”, que desfavorecia o poder de mzamba Kongo.
A incursão dos brasileiros em Angola foi responsável, entre outras coisas, pela introdução da cachaça e da mandioca entre os bantos. As duas mercadorias produzidas no Brasil eram usadas como moeda de troca e logo viraram produtos de largo consumo. A mandioca, por exemplo, passou a ser cultivada ao longo das rotas comerciais (para garantir a alimentação dos escravos) e a farinha se tornou fundamental à dieta dos nativos, pois tornou-se sinônimo de garantia de alimento em tempos de seca e de guerra. Hoje, na Ilha de Luanda, o pirão de peixe feito com farinha de mandioca (lá conhecida como farinha musseque) é o prato mais consumido pela população local.
Uma das consequências da interiorização brasileira em Angola foi o aprofundamento do desgaste das relações entre portugueses e congoleses, que já vinha acontecendo desde a morte de dom Afonso I. Essa deterioração contribuiu para a aproximação do Congo com a Holanda, também interessada no domínio comercial da região. Tais fatos culminaram numa guerra que antepôs congoleses e batavos a portugueses e angolanos. Ou melhor, brasileiros, portugueses e angolanos, porque Portugal delegou a ofensiva ao Brasil, tendo partido do Rio de Janeiro, em 1648, uma expedição de guerra comandada por Salvador de Sá.
A batalha, ocorrida na cidade de Mbwila (Ambuíla), foi vencida pelos luso-brasileiros. Nela, morreram o rei do Congo, os principais candidatos ao trono na linha de sucessão, centenas de nobres e milhares de camponeses. Com isso, mzamba Kongo (São Salvador) foi à ruína, a confederação se consumiu em guerras civis, que perduraram até o início do século XVIII, e o Brasil passou a dominar o comércio de Angola, criando uma identidade incontornável de interesses entre brasileiros e angolanos. Os traficantes negreiros do Rio de Janeiro consolidaram posição tão privilegiada, que a cidade acabou virando o maior polo escravista das Américas, sendo responsável pelo fornecimento de cativos bantos para diversas regiões da colônia. Tal situação só começou a mudar quando a instituição da escravidão se tornou um grande obstáculo para a expansão comercial inglesa.
Fortes marcas culturais
Mesmo que tenha se tornado escasso com a vigilância dos britânicos, o tráfico de bantos perdurou até o século XIX e deixou marcas incontestáveis na cultura do Rio de Janeiro e da nação. Uma delas é a forte presença na música, a começar pelo lundu, que, segundo vários pesquisadores, constituiu-se no primeiro ritmo genuinamente afro-brasileiro, tendo sido a base para o nascimento de outros gêneros musicais, como o choro e o maxixe. Sua dança – de umbigadas e rebolados ao som de batuques – também teria servido de inspiração para o samba, que, embora lembre muito o semba (música característica de Angola), é uma mistura de vários ritmos de origem negra com influências portuguesas e europeias.
O jongo, patrimônio imaterial da cidade, é um dos ritmos tidos como ancestrais do samba. Seus toques de tambores e suas músicas – chamadas de “pontos” e cantadas em português, com várias expressões de origem banto – fazem a ligação com as entidades do mundo espiritual. Aliás, do ponto de vista religioso, as divindades congo-angolanas, ao contrário das nagôs, não têm passagem pela terra nem forma humana. Elas são os próprios elementos da natureza, como o vento, o mar, as plantas etc.
Entre os bantos, o culto aos ancestrais também é intrínseco às suas crenças, e a umbandá (assim, com acento) nada tem a ver com entidades – ela é simplesmente a arte de curar praticada pelo kimbanda (curandeiro). No Brasil, entretanto, essas palavras tomaram novos sentidos. A primeira virou nome de uma religião que mistura santos católicos com guias espirituais e orixás nagôs, e a segunda se tornou sinônimo de magia negra. Também é de origem banto a palavra candomblé (ka-ndombe-mbele, que quer dizer pequena casa de iniciação dos negros), muito embora essa religião, fundada no Brasil, tenha predominância de orixás nagôs.
O contato linguístico com os bantos promoveu, na verdade, muitas alterações e apropriações léxicas, fonéticas e sintáticas no português falado no Brasil. Várias palavras usadas aqui – como dengo, dendê, caçula, senzala, corcunda, moringa, carimbo, cachimbo, marimbondo, xingamento, moleque etc. – têm origem em línguas faladas no Congo e em Angola, especialmente o quicongo, o quimbundo e o umbundo. Nosso sotaque também adquiriu características trazidas por esses povos africanos, como, por exemplo, o afastamento da pronúncia muito consonantal do português europeu: falamos “rítimo” em vez de ritmo; “pineu” em lugar de pneu...
Aos bantos ainda devemos incontáveis heranças em nossa culinária, a começar pela introdução de iguarias como quiabo, jiló, gengibre, feijão fradinho, azeite de dendê, camarão seco, amendoim, pratos à base de leite de coco... Aliás, a influência africana em nossa gastronomia merece um capítulo à parte. Afinal, por cinco séculos, foram as mulheres negras as principais responsáveis pela preparação das refeições nas residências cariocas.
Para saber mais:
Livros
. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. Luiz Felipe Alencastro. Editora: Companhia das Letras, São Paulo.
. História Geral da África V: África do Século XVI ao XVIII. Editores: Bethwell Allan Ogot, Unesco, MEC e Universidade Federal de São Paulo.
Artigos
. A Influência de Línguas Africanas no Português Brasileiro. Yeda Pessoa de Castro.
. Catolização e Poder no Tempo do Tráfico. Ronaldo Vainfas, Marina de Mello e Souza.
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