A Creche Municipal Professora Jurema Gomes Sampaio Delfim (6ª CRE), localizada no Morro da Pedreira, no Complexo de Costa Barros, realizou um encontro virtual sobre Educação Infantil Indígena.
A convidada especial foi Juliana Santana – ou Amanayara Tupinambá, seu nome étnico –, educadora da Creche Municipal Indígena Oka Katuana, em Ilhéus, na Bahia.
Jovem liderança desse povo, Juliana é geógrafa, pesquisadora do Centro de Referência Virtual Indígena Armazém Memória e mestranda em Antropologia Social na Universidade de Brasília (UnB).
O Diálogo Intercultural, como foi chamado o evento on-line, aconteceu no final de novembro, pela plataforma Zoom, e foi aberto a profissionais de outras coordenadorias regionais de educação (CRE). O interesse pelo encontro foi tão grande, que até mesmo estudantes de Pedagogia e professores de outras redes de ensino participaram.
“Pudemos conhecer um pouco das práticas pedagógicas da educação indígena e também mostramos um pouco da nossa realidade, de dentro de uma comunidade. São cenários totalmente diferentes. Foi uma troca muito rica!”, disse Aline Ribeiro de Sousa Baptista, diretora da Creche Jurema.
Para Juliana Tupinambá, em um momento de desconstruções, a troca de conhecimento é fundamental e necessária.
“Compreendemos que se trata de um momento decolonial, em que podemos, de certo modo, tornar a educação escolar indígena mais respeitada, mais valorizada. E só irão compreender o funcionamento se conhecerem”, destaca.
O público-alvo da creche Oka Katuana é formado, majoritariamente, por crianças indígenas, que vivem em comunidades do território tupinambá.
O que chamou atenção dos profissionais da Rede
Diretora-adjunta da Creche Jurema, Lívia Gabriela Mendonça, conheceu Juliana Tupinambá em uma palestra virtual do curso de extensão Infâncias Brasileiras, do Núcleo Infâncias Natureza e Artes (Nina), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
Sensibilizada com a fala da educadora indígena, Lívia entrou em contato e organizou um encontro para que outros profissionais da SME-Rio pudessem ouvir a líder tupinambá.
Lívia destacou alguns pontos que marcaram o encontro virtual e impressionaram os participantes. Confira.
- A organização das turmas. “Diferente da nossa prática na SME-Rio, as turmas indígenas não são agrupadas apenas pela idade. Lá, eles prezam por um arranjo com alunos de diferentes faixas etárias juntos.”
- A relação das crianças com a natureza. “As crianças percorrem todo território em que a creche está inserida, seja para realizar uma atividade psicomotora na praia, utilizando cocos como obstáculos de percurso, ou durante um fazer artístico usando argila encontrada no terreno.”
- O Dia da Integração. “É um movimento muito interessante, que vai entrar para nossos futuros projetos. No dia da integração, os alunos se reúnem para brincar e fazer várias atividades com crianças de outras creches e escolas indígenas.”
- A “farmacinha”. “Eles possuem uma horta com várias ervas, a ‘farmacinha’. As crianças plantam e aprendem os benefícios que cada espécie pode trazer para a saúde. Alimentos orgânicos também são plantados pelas crianças e, depois do cultivo, é montada uma feirinha, onde esses alimentos são doados para as pessoas da comunidade.”
- Tintas naturais. “Nessa creche indígena, as crianças participam de todo processo para a preparação de tintas a partir de elementos da própria natureza”.
Educação escolar indígena
Segundo Juliana Tupinambá, princípios da educação escolar indígena, como o bilinguismo, a interculturalidade, a interdisciplinaridade e o comunitário, são referência para o currículo, assim como a especificidade de cada povo.
“A educação escolar indígena surgiu no ecoar das nossas vozes, de não aceitar mais a escolarização que era – e é – ferramenta de uma política integracionista que, por décadas, levou ao genocídio, ao etnocídio e ao memoricídio dos povos indígenas do Brasil”, afirma.
A educadora enfatiza que, por meio de muita luta, a Constituição Federal de 1988 garantiu o direito à educação escolar indígena. E mostra que muitas práticas desenvolvidas podem não ser tão estranhas a educadores não indígenas.
“A pedagogia de Paulo Freire e o pensamento de Vygotsky, por exemplo, estão presentes, também, na educação escolar indígena. Nossas práticas pedagógicas são bem parecidas com as que eles descreveram. No final, eles descreveram a nossa pedagogia. Escreveram sobre a prática de povos indígenas e quilombolas. Levaram nome de algo que já existia.”
Por dentro das práticas pedagógicas indígenas
Interdisciplinaridade e identidade étnica são destaque nas práticas da Creche Municipal Indígena Oka Katuana, conforme relata Juliana Tupinambá.
“Se trabalhamos a pintura corporal, começamos pelo bioma onde é encontrado o jenipapeiro. Começamos uma roda de conversa ouvindo histórias e tudo o que nossos alunos sabem sobre o fruto: se já comeram, como já viram a mãe ou a avó usarem etc. Até levamos para quem não provou, experimentar”, explica.
Na creche, a valorização da língua tupinambá e do tronco tupi é tido como uma forma de respeito à identidade dos alunos.
“Trabalhamos com os nossos curumins o que foi nos tirado, a nossa língua materna. Mostramos pelos cantos entoantes, pelos nomes das comunidades e dos próprios alunos, que o tronco tupi e a língua tupinambá ainda permanecem vivos”, diz.
A prática de “desemparedar” as crianças é outro ponto marcante na Oka Katuana. “No momento de aprendizado, sempre usamos espaços fora de sala de aula. A relação com o meio ambiente, para nós, é algo muito forte. Uma escola pode não ter espaço amplo de mata, mas podemos fazer uma horta vertical com nossos alunos, por exemplo.”
A criança como sujeito completo
Juliana Tupinambá reforça que a relação entre educador e aluno é uma troca de saberes e que a criança não é “vazia”. A educadora afirma que é preciso acabar com a concepção de que a criança só se torna alguém quando cresce.
“Nós, educadores, temos que fazer essa reflexão e parar de desmotivar e de matar os sonhos dos nossos alunos. Quando você fala que a criança ainda vai ser alguém, ela se sente um nada. Mas ela já é alguém desde que nasce. Ela cresce consigo mesma, com sua própria ciência”, avalia.
Para a líder tupinambá, o aprendizado vem da convivência e da vivência do aluno, e não apenas do saber do professor. “A criança tem um conhecimento prévio, adquirido em seu lar, com sua família. Ela também aprende com o porteiro, com a merendeira, com a tia dos serviços gerais, com o ancião da aldeia, dentro da comunidade.”
Sugestões para abordar a questão indígena sem reforçar estereótipos
Juliana Tupinambá reforça que os povos indígenas sempre foram invisibilizados e lamenta que as escolas convencionais, em geral, retratem a questão indígena apenas no dia 19 de abril, “Dia do Índio”.
“Colocam nossos adornos, que para nós são sagrados, como algo fantasioso. Fazem com que as crianças tenham a concepção de que os povos indígenas já não existem mais. Nos tornamos mitos, como dinossauros, que não existem mais neste século. E colocar o indígena como algo que não existe mais, como uma fantasia, é fazer com ele seja excluído, permaneça excluído da sociedade”, ressalta.
“Estereótipos e ideologias eurocêntricas de que somos selvagens fazem com que a criança sinta medo quando ela se depara com a diversidade cultural dos povos indígenas”, completa a educadora.
Diretora-adjunta da Creche Jurema, Lívia Mendonça admite a abordagem, que considera equivocada. “Esse equívoco se constrói de forma inocente, por estarmos diante ao desconhecido. Nosso contato com a cultura indígena se deu por meio dos livros, num passado que ficou lá atrás. Pedagogicamente, trazemos o índio de 1500”, reconhece.
Juliana Tupinambá enfatiza a importância da Lei N.º 11.645/09, que torna obrigatório o estudo da história e da cultura afro-brasileira e indígena.
Ela destaca, também, a necessidade de acabar com a ideia de que indígenas são “bichos”, são “do mato”. “Quem dera fossemos do mato. Mas, infelizmente, nos tiraram. Tentam a todo tempo tirar de nós a nossa floresta, o nosso mato”, completa Tupinambá.
Ela fala, ainda, sobre a importância de mostrar às crianças que todo o território brasileiro é indígena, tem indígenas. E apresenta algumas abordagens possíveis.
“Uma proposta interessante é colocar no currículo das escolas práticas pedagógicas que permitam mostrar a ciência tradicional do povo indígena, por meio da mística em relação ao conhecimento sobre plantas, sobre rios, sobre montanhas. Isso tem um significado para nós. É o respeito pela mãe natureza e pelos povos indígenas, que protegem os biomas brasileiros.”
De acordo a educadora, é necessário desconstruir as várias violências contra os povos indígenas, levando os alunos a conhecer e respeitar essa cultura.
“Por que não convidar um indígena para um momento com os alunos? Por que não falar da culinária e mostrar práticas e alimentos comuns na sociedade de hoje? Ou, ainda, mostrar a cultura indígena por meio das músicas, das plantas, dos rios, do banho no mar?”, propõe Tupinambá.
A educadora também sugere a visita a uma comunidade indígena ou até mesmo a exibição de um vídeo que retrate práticas realizadas em uma aldeia, por exemplo.
“É importante o aluno saber que nosso país é diverso e que todo brasileiro tem ascendência indígena. A diferença entre eu me autoafirmar indígena e o outro não, é a falta de conhecimento sobre ancestralidade. Não posso falar que sou indígena se não conheço minhas raízes.”