Não se tem notícia de qualquer sociedade humana que não tenha observado e interpretado o céu e utilizado, na prática, os saberes oriundos da observação das estrelas, tal como medir a passagem do tempo e prever as melhores épocas para plantar e colher. Mas os diversos povos ao redor do mundo não sistematizaram os fenômenos celestes a partir dos mesmos critérios. Até porque, a depender do lugar em que se está no planeta, os corpos celestes observados são diferentes ou indicam eventos naturais distintos.
No Antigo Egito, por exemplo, quando Sírius aparecia na linha do horizonte pouco antes de o sol nascer, era sinal de que as cheias do Rio Nilo estavam próximas. Já para os tareno (ou tirió), do noroeste do Pará, quando isso acontecia, era sinal do início da estação seca. E para gregos e romanos, era o começo da época do calor.
Seja qual fosse a civilização ou etnia, a observação do céu, além de servir para relacionar as estrelas aos ciclos naturais do lugar, também interagia com as forças espirituais (deuses, entidades etc.). Isso significa que a dimensão sociocultural de cada povo imprimiu diferentes sistemas de pensamento, explicações e cosmovisões, ainda que se referissem a um mesmo fenômeno celeste aparente.
A Lua entre os tupis-guaranis
Muito antes de Isaac Newton apontar, no final do século XVII, que as marés estavam relacionadas às forças de atração gravitacional exercidas pela Lua, os tupinambás do Maranhão já atribuíam ao satélite da Terra o fenômeno das marés. Segundo Flavia Pedroza Lima, astrônoma da Fundação Planetário da Cidade do Rio de Janeiro e doutoranda em História das Ciências e das Técnicas, esse conhecimento indígena foi registrado pelo missionário capuchinho francês Claude d’Abbeville, em livro publicado em Paris em 1614, intitulado Histoire de la mission de pères capucins en l’Isle de Maragnan et terres circonvoisines (História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas).
Nessa época, a Europa buscava explicação científica para o fenômeno marítimo. Em 1632, ou seja, 28 anos após a publicação de Claude d’Abbeville, Galileu Galilei escreveu em livro (Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo; ptolomaico e copernicano) que as marés eram fruto dos movimentos de rotação e translação da Terra.
Além do relato do padre capuchinho, em artigo publicado nos Anais da 61ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o físico Germano B. Afonso, do Centro Universitário Internacional (Uninter), conta que vários mitos indígenas antigos relacionavam o fenômeno da pororoca (das ondas que se formam na foz do Rio Amazonas) às luas cheia e nova. Conforme ele, isso seria mais uma prova de que os povos originários do Brasil conheciam a relação entre as marés e as fases da Lua bem antes dos europeus.
Os tupi-guarani, de norte a sul do Brasil, embora observassem céus distintos, em função da localização, tinham diversos conhecimentos comuns, como os da maior atividade dos seres terrestres durante a lua cheia, por causa da luminosidade noturna. Por isso, preferiam caçar nesse período, pois a maior exposição dos animais os tornava presas mais fáceis. Para eles, a Lua também era (e continua sendo) um dos indicativos para a pesca: o camarão é mais farto na lua cheia, assim como a crescente e a minguante são boas para pescar linguado no mar. Na verdade, quando os indígenas vão pescar, sabem exatamente que tipo de peixe vão pegar.
O tempo e o Sol
Conforme matéria publicada na revista Ciência Hoje das Crianças, nossos povos originários se baseavam nas fases da Lua para medir o mês, já que observaram que uma lunação inteira – constituída das fases nova, crescente, cheia e minguante – durava de 29 a 30 dias.
Segundo Flavia Pedroza Lima, astrônoma do Planetário, há relatos de que várias etnias contavam a passagem do tempo a partir das luas e lunações. Se alguém perguntasse a um indígena há quanto tempo ele plantou o milho, a resposta poderia ser: “há quatro luas”. Nossos povos originários também contavam o ano. Para a maioria das etnias, ele se iniciava quando as estrelas Plêiades (que ficam na constelação do Homem Velho) apareciam a leste, pouco antes de o sol nascer, ou seja, em meados de junho.
Os tupi-guarani também observavam os movimentos aparentes do Sol para determinar o meio-dia solar, os solstícios, os equinócios e os pontos cardeais. Para isso utilizavam um instrumento chamado gnômon (Kuaray Ra'anga em guarani e Cuaracy Raangaba em tupi antigo). Conforme explica o professor Germano B. Affonso, o instrumento consiste em uma haste cravada verticalmente no solo, a partir da qual se observa a sombra projetada pelo Sol no decorrer do dia.
Há também um outro tipo de gnômon, encontrado em diversos sítios arqueológicos do Brasil, que é feito a partir de uma rocha com cerca de 1,5 metro de altura. Talhada rusticamente como uma pirâmide estreita de quatro lados, a pedra aponta verticalmente para o ponto mais alto do céu (o zênite) e tem as duas faces mais largas voltadas para o norte e o sul e as mais estreitas para o leste e oeste.
Ainda segundo Affonso B. Germano, em volta do gnômon indígena há rochas menores (seixos) que formam uma circunferência e têm linhas orientadas para os pontos cardeais e para o nascer e o pôr do sol nos dias do início de cada estação do ano (solstícios e equinócios).
Constelações
Flavia Pedroza Lima explica que a definição de constelação dos indígenas brasileiros é completamente diferente do conceito ocidental. Para os povos originários do Brasil elas não são determinadas por um agrupamento de estrelas que formam um suposto desenho, mas por um conjunto de marcas e manchas da Via Láctea (chamada por eles de Caminho das Antas) que, juntas, geram uma imagem. “Nas constelações indígenas também há estrelas, mas não são elas que definem o formato”, elucida a astrônoma.
Embora conhecessem os solstícios e os equinócios, os indígenas identificavam o início de uma nova estação pelas constelações. A do Homem Velho indicava que o verão estava por vir; a do Veado, o outono; a da Anta do Norte, a primavera; e, por fim, a da Ema, o inverno. Por isso, a observação das constelações também era importante para a agricultura. Mas não apenas isso, também estavam relacionadas a mitos e rituais.
Entre os bororos, por exemplo, era feita uma cerimônia quando as Plêiades (para eles o penacho branco do Homem Velho) apareciam no céu pela primeira vez no ano. O ritual consistia em acender uma fogueira, em torno da qual cantavam, dançavam e pulavam sobre o fogo, quase queimando seus pés. A cerimônia tinha a intenção de “queimar os pés” das Plêiades para que elas andassem mais devagar e, assim, prolongassem aquele período, que era bom para eles.
Os mitos criados em torno das constelações também tinham importante função pedagógica. A repetição deles, por meio de histórias e rituais, passava para as gerações o conhecimento acumulado com a observação do céu, tal como as demais civilizações de tradição oral, a exemplo dos gregos, cujos mimos recitavam a Ilíada e a Odisseia para que a história de seu povo não fosse esquecida.
Astronomia cultural e ensino
Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o ensino de Astronomia se enquadra na unidade temática Terra e Universo e deve acompanhar a vida do estudante do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental. Além da compreensão das características do planeta, do Sol, da Lua e de outros corpos celestes, a BNCC aponta para a importância da observação dos principais fenômenos celestes e para a necessária compreensão de que a construção dos conhecimentos sobre a Terra e o céu ocorreu de diferentes formas em distintas culturas ao longo da história da humanidade.
As Leis nº 10.639 (2003) e nº 11.645 (2008) também apontam para a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena. Então, por que a maioria das escolas continua a ensinar apenas conhecimentos oriundos da astronomia ocidental? Para Flavia Lima Pedroza, a questão reside no fato de a maioria dos professores desconhecer a cultura e os saberes dos povos indígenas (e africanos), porque isso não é ensinado na maioria das universidades.
“Isso não é uma opinião. É o que eles me falaram durante os dois cursos que ministrei no Planetário do Rio de Janeiro, sobre Astronomia Islâmica, Indígena e Africana, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação (SME)”, diz. E, segundo a astrônoma, os 150 professores que fizeram o curso saíram encantados com a possibilidade de poderem aplicar os novos conhecimentos em sala de aula.
A astronomia indígena pode estar presente no ensino de várias habilidades propostas pela SME, como por exemplo: “Verificar, através da observação, as posições do Sol no céu ao longo do dia (nascente e poente)”, o que pode ser feito com um gnômon, ou simplesmente explicando como vários povos verificavam as horas. Ou ainda: “Analisar e descrever as diferentes leituras do céu e explicações sobre a origem da Terra, do Sol ou do Sistema Solar, ao longo da história da humanidade”.
Para aprofundar o assunto
A seguir estão algumas referências bibliográficas do curso de Astronomia Islâmica, Indígena e Africana ministrado por Flavia Lima Pedroza para os professores da SME:
Disponíveis online
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- LIMA, F. P.; NADER, R. V. de. (2019), Astronomia cultural: um olhar decolonial sobre e sob os céus do Brasil. Revista Scientiarum História XII, Vol. 2.
- AFONSO, Germano Bruno, 2004, As Constelações Indígenas Brasileiras. Observatórios Virtuais, USP.
Impressos
- AFONSO, Germano Bruno (2006), Mitos e Estações no Céu Tupi-Guarani. Edição especial scientific American Brasil, v. 14, p. 72-79.
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- Cardoso, Walmir T. O Céu dos Tucano na Escola Yupuri – Construindo um calendário dinâmico (Tese de Doutorado). Doutorado em Educação Matemática, PUC/SP. 2007.
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________ N; Magalhães JR., Lázaro, Mascarenhas, Regina. O Céu dos Índios Tembé (Série Etnoastronomia), 2. ed. (rev.). Belém: Planetário do Pará/UEPA, 2000.
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- LIMA, Flavia Pedroza (2004). Observações e descrições astronômicas de indígenas brasileiros - A visão dos missionários, colonizadores, viajantes e naturalistas. Dissertação de Mestrado em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia. Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ.
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