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Educação e formação de um país – questão de civilidade
17 Novembro 2015 | Por Roberto Da Matta
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Como o Brasil se tornou o país no qual vivemos hoje? A Antropologia ajuda a investigar a formação da nossa sociedade, o perfil do povo brasileiro, o papel da educação nesse processo, entre outros marcadores importantes. Partindo da cultura indígena até a recente civilização tecnológica, a trajetória da modernização da sociedade brasileira encontrou obstáculos, conflitos, e ainda há muito a fazer em busca de uma convivência igualitária.

artigoDaMatta legendaSociologia do trânsito

Analisar o trânsito ajuda a entender traços importantes do comportamento da sociedade brasileira, conforme escrevi em meu livro Fé em Deus e Pé na Tábua ou Como e Por Que o Trânsito Enlouquece no Brasil. Tudo começou em 1963, quando morei nos Estados Unidos e me surpreendi ao perceber que os automóveis paravam quando eu colocava o pé para atravessar a rua. No Brasil, se eu fizer a mesma coisa, serei atropelado – porque quem tem automóvel, aqui, se sente hierarquicamente superior, principalmente quem tem um carro novo.

Quando voltei para cá, em 1964, comecei a observar a maneira de as pessoas dirigirem e passei a fazer anotações e a guardar recortes de jornais sobre o que acontecia no trânsito.

Nas reportagens que arquivei, havia situações do tipo: o motorista não se sente na obrigação de frear o carro para o pedestre passar, mas é a lei. Mas, para ele, o pedestre, naquele momento, é uma pessoa que o atrapalha.

Incluir X excluir

Nas entrevistas que fizemos, constatamos que todos os motoristas acham que os outros motoristas os atrapalham. Como no elevador: as pessoas que estão junto com você atrapalham! Ou na fila do cinema: quem está na sua frente atrapalha...

É uma sociedade que não educa as pessoas. Não é educar no sentido da obtenção de conhecimento, mas no sentido cívico, de que todos são iguais. A exclusão é normal; o problema é incluir. Enquanto você está excluindo, tudo certo. Agora, quando outras pessoas passam a frequentar o mesmo restaurante que você e é preciso esperar para ser atendido, começam os problemas. O restaurante, que era exclusivo, não é mais.

Em casa, na intimidade da família, existe uma hierarquia forte. O lugar de cada um é muito bem marcado, até na mesa de jantar. Na rua, é diferente. Há um espaço que, por definição, é igualitário. O trânsito obriga à igualdade; só que não fomos treinados, não aprendemos isso em lugar nenhum. Nem na família, nem na escola primária ou secundária.

Sociedade igualitária

Os professores no Brasil enfrentam problemas seríssimos de falta de limite de alunos. Mas isso acontece também na própria discussão política, na maneira como lidamos com as dificuldades do mundo moderno.

Não existem paradigmas. O mundo começa todo dia; é a pós-modernidade. Nossa paciência é testada a todo momento.
O ciclista anda na contramão porque entende que seu veículo é muito pequeno para seguir o fluxo do trânsito; o dono de um BMW não respeita o sinal porque o carro é muito veloz e ele sempre acha que vai dar tempo de passar no amarelo. Para mim, essa é uma discussão-chave no Brasil porque existe, hoje, uma pressão pelo igualitarismo, como talvez nunca tenha existido na história do país.
Estou ficando cada vez mais pessimista, à medida que envelheço. Tenho 76 anos e não vejo chances de que algumas coisas óbvias possam acontecer até o final da minha vida. Como o cumprimento das regras.

As pessoas não obedecem aos sinais de trânsito, a menos que haja um guarda no local. Então, há um componente personalístico na política brasileira que dissolve as ideologias. Com essa característica, fica difícil dar grandes saltos na área da economia, da política ou da educação.

Em paralelo, existe um contrabalanço que alivia a falta de politização, que é essa coisa de sermos uma mistura de índio, de branco, de negro. Então, temos o bom humor, a música é fabulosa, temos o carnaval. E, de fato, temos uma sensibilidade muito grande para a diversidade, porque somos um país desigual! Todo país desigual tem problemas com os inferiores e com os superiores. Esse nosso afeto é engendrado por uma estrutura hierárquica: você chega a um lugar e quer saber quem é que manda. A partir daí, vai tratar essa pessoa de um modo diferente do que aquela que não manda.

De barões a senadores

Não é questão de gostar de hierarquia. O brasileiro nunca se livrou dela – acha natural. O Brasil foi um país hierarquizado até 1888. Aliás, continua sendo, porque a República foi feita em cima do Império. Os barões viraram senadores. Dom Pedro, inclusive, usava esse tipo de política para apaziguar eventuais críticos e inimigos: transformava todo mundo em barão.

A experiência política brasileira que aconteceu no Império foi importante porque consolidou determinadas regras e uniu todo o território, mas também foi uma política extremamente conservadora, antirrepublicana, porque todo mundo sabia o seu lugar.
Era uma sociedade talvez mais tranquila de se viver do que a de hoje, porque você sabia com quem estava falando. Não havia a promessa republicana de que todos somos iguais. Estava escrito na Constituição do Império: “Somos todos iguais perante a lei, exceto...”. Aí, capitulava. Hoje, vivemos na República, mas o crime depende da pessoa que o cometeu. O crime de corrupção política (o chamado colarinho branco) não é punido. Quer dizer, há uma elite que é muito poderosa, porque não teve mudanças no sentido da sua estruturação.

artigoDaMatta

Falta de educação

A educação no Brasil é ruim. A universidade é o antimercado, portanto, não valoriza talento. Aquilo que deveria ser gratuito, obrigatório e compulsório, que é a educação primária e secundária, saiu do âmbito público na medida em que a classe média, se espelhando nas mais altas, passou suas crianças para as escolas particulares, que proliferaram.

O politicamente correto está liquidando as crianças brasileiras – isso de não ter limite, de poder fazer tudo. A inspiração vem de Summerhill, uma escola inglesa, e de outras americanas, onde o aluno traça o seu programa. São escolas experimentais, mas o Brasil seguiu mais ou menos a corrente: não pode punir o aluno.

Sou favorável ao uso do uniforme porque obriga o aluno de uma camada social com maior poder aquisitivo a se vestir como o de menor renda. Agora, não é possível uma escola primária onde as crianças botam o dedo na cara do mestre, dizendo coisas do tipo: “Quem paga o seu salário sou eu, é a minha família; portanto, o senhor não abuse comigo. O senhor sabe com quem está falando? Eu sou filho de fulano de tal”.

A educação é um tema importante e sistematicamente mencionado em 99,9% de todo discurso político sobre o Brasil. É preciso discutir o tipo de educação de que precisamos aqui, uma educação para essa cidadania igualitária. Vai ser preciso um diretor ou diretora que chame os pais dos alunos e diga: “Olha, seu filho não tem limite”.

Heróis nacionais

Quando se vive em uma sociedade que lida com diferenças e desigualdades muito grandes, ela mesma inventa uma série de mecanismos de passagem entre esses grupos. O futebol é um código importante para ligar quem está no alto com quem está por baixo, de uma maneira inequívoca, porque a pessoa pode torcer pelo Flamengo e ser milionária ou torcer pelo Flamengo e ser pobre.
Nós temos o problema da justificativa do crime, ou do pequeno crime, da vagabundagem ou da ausência de certas coisas, em nome do que é politicamente correto ou daquilo que é aceitável porque, afinal de contas, é uma sociedade com muitas pessoas economicamente desfavorecidas.

O que é a gentileza?

Imagine o ciclista, por exemplo. Você não vai multar o ciclista porque ele está na contramão, mas a bicicleta é um veículo. A mesma coisa acontece quando um idoso está atravessando a rua. Ninguém vai parar um automóvel para ser gentil. O que é a gentileza em uma sociedade urbana, industrial, globalizada? A gentileza é o respeito pelo outro. Temos que ter paciência, saber esperar.

O nosso projeto, a nossa agenda não pode ser mais importante do que a agenda do outro. E aí, a pergunta: como é que se conjugam essas agendas? Politizando mais a sociedade, discutindo mais esses problemas. Ouvindo coisas que aquele que pertence à estrutura clássica do poder à brasileira não vai querer ouvir, não vai querer que aconteça, mas tem acontecido.

O meu lado otimista diz que esse processo é inexorável. A democracia igualitária é inexorável. O liberalismo, a meritocracia e a competição são inexoráveis. Não tem como deter isso. Esse processo está em curso.

Roberto Da Matta é escritor, antropólogo e professor.

Artigo extraído do fascículo Conceito & Ação (Parte 2), a partir da entrevista concedida.

 
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