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Virgínia Leone Bicudo: pioneira na psicanálise e no estudo de atitudes raciais
19 Novembro 2020 | Por Fernanda Fernandes
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Virgínia Bicudo: primeira não médica a se tornar psicanalista no Brasil (Foto: Fundo Virgínia L. Bicudo, CDM - Sociedade Brasileira Psicanálise de São Paulo)

Virgínia Leone Bicudo, mulher negra, foi uma das figuras mais importantes na disseminação da psicanálise no Brasil e no debate de estudos raciais nesse campo.

Foi a primeira não médica a se tornar psicanalista no país e, também, um dos primeiros nomes a falar sobre o campo clínico da psique infantil.

Com uma vida marcada pelo racismo, ela buscou na ciência um local para debater os preconceitos que enfrentou.

"Para não ser rejeitada, tirava nota boa na escola. Desde muito cedo, desenvolvi aptidões para evitar a rejeição. Você precisa tirar nota boa, ter bom comportamento e boa aplicação, para evitar ser prejudicada e dominada pela expectativa de rejeição, diziam meus pais. Por que essa expectativa? Por causa da cor da pele. Só pode ter sido por isso. Eu não tive na minha experiência outro motivo", afirmou em entrevista a Ana Verônica Mautner, publicada na Folha de São Paulo, em 2000.

Sua dissertação de mestrado, intitulada Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (1945), foi a primeira a tratar da questão racial no País. A pesquisa questionava e confrontava mitos e visões tradicionais da época que afirmavam a existência de uma “harmonia racial”.

Além de psicanalista, Virgínia Bicudo foi educadora sanitária, visitadora psiquiátrica, socióloga, professora universitária e divulgadora científica.
Morreu em 2003, aos 92 anos, em São Paulo.

Virgínia Bicudo: vida e formação inicial

Virgínia Bicudo nasceu em 21 de novembro de 1910, em São Paulo. Sua mãe era uma imigrante italiana e seu pai descendente de escravizados.

Virgínia Bicudo com a mãe, o pai e os irmãos, em São Paulo, 1929. Da esquerda para a direita: Lourdes, Helena, Dona Joana, Carmem, Sr. Teófilo, Teófilo Jr. e Virgínia (Foto: Fundo Virgínia L. Bicudo, CDM – Sociedade Brasileira Psicanálise de São Paulo)

Sofreu com o preconceito por ser negra, segundo revela, desde a época em que entrou na escola, onde foi chamada pelas outras crianças, pela primeira vez, de “negrinha”.

Muito dedicada aos estudos, formou-se em 1930 na Escola Normal da Capital (futura Escola Caetano de Campos), importante instituição de São Paulo.

Em 1932, formou-se educadora sanitária pela Escola de Higiene e Saúde Pública do Estado de São Paulo.

Ainda na década de 1930, atuou como visitadora psiquiátrica, cuidando da prevenção e do tratamento de problemas psíquicos de crianças.

Trabalhou por muitos anos em vários órgãos municipais e estaduais, sempre na área de Educação.

A socióloga Virgínia Bicudo

Virgínia Bicudo ingressou no curso de Ciências Políticas e Sociais da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP), onde se formou em 1938, sendo a única mulher em uma turma de oito alunos.

“Eu tinha conflitos muito grandes comigo mesma, mas achava que a causa era social. Desde criança eu sentia preconceito de cor. Queria o curso de sociologia porque, se o problema era esse preconceito, eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito, que é formado ao nível sociocultural”, relatou em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, em 1994.

Virgínia Bicudo em sua formatura, em 1938: única mulher da turma (Foto: Cedoc Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo)

Foi nas aulas da faculdade que Virgínia manifestou interesse pela psicanálise e pelas ideias de Sigmund Freud.

Na ELSP, ela conheceu Durval Marcondes – psiquiatra considerado o fundador do movimento psicanalítico brasileiro –, dando início a um trabalho de estudo e difusão desse campo.

Mais tarde, ao lado dele, Virgínia deu aulas nas disciplinas de Higiene Mental e de Psicanálise, na mesma instituição.

Virgínia foi a primeira paciente de Adeleid Koch, refugiada austríaca que inaugurou o método de Freud em São Paulo.

Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo: dissertação pioneira  

Em 1942, Virgínia Bicudo ingressou no mestrado, ainda na ELSP. Levou discussões sobre racismo, baseadas em suas experiências pessoais, para os estudos de psicanálise.

Em sua dissertação (1945), Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, falou sobre a existência do preconceito racial mesmo com a diminuição de diferenças sociais.

A professora Virgínia Bicudo, 1945 (Foto: Cedoc Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo)

Discutiu, ainda, a importância de associações negras, como a Frente Negra Brasileira, na mobilização contra os obstáculos para ascensão social dos negros.

“Quanto mais subimos nas classes sociais, tanto mais aumenta a consciência de cor e tanto maior o esforço despendido para compensar o sentimento de inferioridade. […] Entretanto, a ascensão ocupacional não confere ao preto o mesmo status social do branco, consideradas as restrições demarcadas na linha de cor, ao passo que o mulato garante sua inclusão no grupo dominante, embora em sua personalidade permaneçam as consequências do conflito mental”, afirma na dissertação.

A socióloga e psicanalista publicou, ainda, outro trabalho sobre relações raciais no Brasil, em 1955. Atitudes de alunos de grupos escolares em relação com a cor dos seus colegas foi resultado das pesquisas de Virgínia durante a realização de um projeto da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) sobre questões raciais, do qual foi convidada a participar.

Ela foi a única mulher negra do quadro de pesquisadores do projeto. Nesse trabalho, Bicudo levou a perspectiva da criança para a compreensão das relações raciais na sociedade brasileira. Ela foi uma das primeiras sociólogas a realizar pesquisa social com crianças.

Acusação de charlatanismo

Virgínia Bicudo fundou o Grupo Psicanalítico de São Paulo, precursor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em 1944.

Virgínia Bicudo (Foto: Fundo Virgínia L. Bicudo, CDM - Sociedade Brasileira Psicanálise de São Paulo)

Na década de 1950, a prática clínica e as iniciativas de Virgínia para promover a psicanálise geraram grande repercussão.

Ela assinou uma coluna na Folha da Manhã, Nosso Mundo Mental, e comandou um programa de mesmo nome na rádio Excelsior, no qual se propunha a escutar os problemas enfrentados por pais na educação dos filhos, entre outros.

Durante o I Congresso Latino Americano de Saúde Mental (1954), que ela ajudara a organizar junto com Durval Marcondes, Bicudo foi acusada de charlatanismo por não ter formação médica.

“Eu estava sentada e todos os médicos de pé, todos gritando: ‘Absurdo! Psicanalistas não médicos!’. Foi horrível! Olha que eu quase me suicidei por isso. Você ouvir outras pessoas dizendo: ‘Você é charlatã!’. Ah! Você não fica de pé! Você vai pra casa e quer morrer”, revelou em entrevista à SBPSP, em 1989.

Virgínia Bicudo e o trabalho com crianças

Em 1955, Bicudo foi para Londres estudar sobre psicanálise infantil. Lá, conheceu a austríaca Melanie Klein, um dos grandes nomes da psicanálise mundial, pioneira na abordagem com crianças.

Assim, quando retornou ao Brasil, em 1959, Virgínia introduziu as ideias kleinianas em São Paulo. Também se destacou no ensino da psicanálise de crianças no Brasil, introduzindo essa especialidade na SBPSP, onde atuou por 14 anos.

Na década de 1970, Virgínia ainda contribuiu para a fundação da Sociedade de Psicanálise de Brasília.

Virgínia Bicudo se afastou do trabalho clínico em 2000 (Foto: Fundo Virgínia L. Bicudo, CDM – Sociedade Brasileira Psicanálise de São Paulo)

O fim da trajetória de Virgínia Bicudo

Virgínia Bicudo publicou artigos em jornais nacionais e internacionais, sendo o primeiro membro da SBPSP a publicar no International Journal of Psychoanalysis, em 1964.

A psicanalista consolidou sua carreira, foi requisitada por ministros e por senadores e, até o final da vida, trabalhou em prol da difusão e do ensino da psicanálise.

Segundo o psicanalista Christian Dunker, em artigo publicado no Blog da Boitempo, a questão da negritude reapareceu na velhice, quando Bicudo passou a usar turbantes e falar do cabelo como marcador social.

A pesquisadora se afastou do trabalho clínico em 2000 e morreu em 2003, antes de completar 93 anos.

Apesar do seu pioneirismo, Virgínia Bicudo é pouco reconhecida no Brasil. Sua dissertação de mestrado, por exemplo, só foi publicada 65 anos depois, em 2010.

Virgínia Bicudo: pioneira na psicanálise e no estudo de atitudes raciais (Ilustração: GEA MultiRio/ Beta Egypto)

 

Fontes:

Site do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo.
Site da Sociedade de Psicanálise de Brasília.
Virgínia Leone Bicudo (1910-2003). Projeto Memória da Psicologia – Pioneiros da História da Psicologia no Brasil. Conselho Regional de Psicologia SP.
DIGUEZ, Carla Regina Mota Alonso. “Negro é negro”: a contribuição da obra de Virginia Leone Bicudo aos estudos de relações raciais. Unicamp/ FESP-SP. http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/3268
FRAUSINO, Carlos Cesar Marques. Virgínia Leone Bicudo: Um capítulo da história da psicanálise brasileira. Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da Sociedade de Psicanálise de Brasília.
GOMES, Janaína Damaceno. Os segredos de Virgínia: Estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Da Universidade de São Paulo, 2013.
MORETZSOHN, Maria Ângela Gomes. Uma história brasileira. J. psicanal., São Paulo, 2013.
SANTOS, Elisângela da Silva. O legado de Virgínia Leone Bicudo para a sociologia da infância no Brasil. Cad. Pesqui., São Paulo, 2018.
TEPERMAN, Maria Helena Indig e KNOPF, Sonia. Virgínia Bicudo: uma história da psicanálise brasileira. J. psicanal. [online], 2011. Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
Mulher assinou a primeira coluna sobre o tema. Folha de São Paulo. Ilustrada. São Paulo, 26 de março de 2011. 

 
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