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A infância na vida moderna
20 Outubro 2015 | Por Sandra Machado
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becker2Mais de 20 anos de atendimentos em consultório fizeram de Daniel Becker um grande observador da condição infantil. Fundador e conselheiro da ONG Centro de Promoção da Saúde (Cedaps), que atua em territórios de pobreza, ele também conhece o outro extremo social, já que é consultor de órgãos governamentais, empresas e organizações internacionais. O trânsito entre esses dois mundos aguçou sua visão para hábitos da atualidade que jamais poderiam ser considerados benéficos para a saúde de meninos e meninas e, no entanto, estão muito presentes na vida deles.

O número de crianças fora da creche, a subnotificação de violência praticada contra elas, o trabalho infantil e muita omissão diante de tudo isso reforçam a necessidade de darmos uma parada e avaliarmos de que maneira a sociedade lida com esses assuntos. Bem menos explícitos, muito embora bastante alarmantes, o pediatra relacionou o que ele chama de sete pecados capitais cometidos contra as crianças, compartilhados em sua palestra durante o 7º Fórum Pensar a Infância.

Seres humanos distantes da sua natureza

Primeiro pecado: a privação do nascimento natural e do aleitamento materno. Em lugar de um parto natural e humanizado, por volta da 37ª semana de gestação começa o que ele considera um trabalho de convencimento da mãe por parte do obstetra em favor de uma cesariana eletiva. “A cesárea traz graves consequências para a saúde da criança e da mulher, e gera problemas para a amamentação, tudo em função de uma cultura de conveniência do médico e do hospital”. Além disso, condena a prescrição da mamadeira já na saída da maternidade, decorrente do poder da indústria que, desde os anos 1940, vende leite em pó como se fosse o melhor alimento possível para o desenvolvimento do bebê.

O segundo pecado tem a ver com a criança que estuda em período integral. Ou, nas palavras do dr. Becker, fica institucionalizada 12 horas por dia. “O convívio e a interação com os pais são perdidos. Sem intimidade, não há geração de memória afetiva”, destaca, associando o fenômeno à falta de confiança entre pais e filhos nos momentos de crise que a vida, inevitavelmente, reserva para cada pessoa.

No terceiro lugar, aparece a intoxicação pelo consumo excessivo de substâncias como açúcar, sal e gordura, presentes na comida congelada ou industrializada, que substitui a alimentação caseira e tem gerado a obesidade epidêmica, inclusive entre as crianças. Mesmo quem não abre mão de preparar os pratos para a família precisa contar com a presença dos agrotóxicos, causadores não só de alergias, mas também de câncer e até de distúrbios como o autismo. “Alguns agrotóxicos proibidos no exterior continuam sendo usados aqui”, denuncia o médico.

Crianças que fazem ioga em vez de andar de balanço

Na quarta colocação, ficam o confinamento e a distração permanente. Com uma média de dez horas por dia expostas a todo tipo de telas portáteis, as crianças vivem sem um único momento de ócio ou de tédio. “Elas têm uma agenda de adulto e estão sendo privadas da capacidade de imaginar”, resume. O dr. Becker também critica, em quinto lugar, o que ele chama de mercantilização da infância e do consumo infantil: valores maciçamente apresentados pela publicidade e pela cultura do shopping center como local de entretenimento. “Comida tóxica, brinquedos caros e sexismo fazem parte do pacote”.

O sexto item tem a ver com a adultização e a erotização precoce. “Há blogueiras fitness de nove anos, cantores mirins de funk e a exigência de um corpo feminino que, hora é esquelético, hora é paquidérmico, pelo uso de esteroides”. O pediatra atribui a esse bombardeio de informações o surgimento de distúrbios graves em relação à própria imagem durante o período de crescimento. O último pecado é a entronização da criança e a superproteção parental. “São pais sem autoridade, que não dão limites e oferecem presentes em vez de presença. Mas a criança precisa, ela pede um ‘não’ de vez em quando”. Para o especialista, o quadro pode levar à insegurança e até ao adoecimento.

Remissão dos pecados

becker3O dr. Daniel Becker defende que a escola ofereça conteúdos mais úteis nas salas de aula. Ele afirma que o modelo curricular e desarticulado da realidade pode levar a criança a uma síndrome indesejável – com rebeldia, desatenção, insônia, mau resultado escolar – e que, lamentavelmente, o tratamento mais encontrado para esse mal-estar da infância tem sido o medicamentoso. “A própria sociedade produz o problema. As emoções cotidianas estão sendo transformadas em doenças e vistas como transtornos”, garante, a fim de denunciar o que chama de medicalização do comportamento infantil, enquanto acusa os pais de buscarem o sonho do filho perfeito.

“Hoje, para qualquer criança divergente ou mais sensível se prescrevem drogas e, com isso, se promove a perda da genialidade”. Ele acredita, inclusive, que não apenas os problemas da alma têm sido excessivamente combatidos com remédios. Excesso de antibióticos, surtos de vacinas, exames e procedimentos desnecessários vêm criando o que ele chama de “a sociedade do medo”, sendo que apenas o amor é capaz de criar a ressonância para a felicidade infantil. No entanto, Becker receita duas soluções simples para reverter esse quadro sombrio: tempo e espaço. Pais precisam priorizar o convívio com os filhos e reservar uma parte do seu dia para isso. O contato com a natureza é mais um aliado para a promoção da saúde física e mental.

Mudanças paulatinas podem acontecer a partir de um compromisso de todos em favor de um transporte público melhor (menos poluição), do consumo de alimentos orgânicos (menos intoxicação), da ocupação saneadora dos espaços públicos, entre outras atitudes simples. O ponto alto seria uma campanha voltada especificamente para o público infantil, com o slogan “Crianças, já para fora!”. O pediatra vê os produtos audiovisuais como fundamentais nesse processo, uma vez que eles geram acesso ao conhecimento e estimulam as relações sociais, as ferramentas por excelência de reforma das mentalidades, desde que o mundo é mundo.

 
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