Para conhecer uma cidade, é preciso saber de seu passado, dos povos que contribuíram para sua formação e dos processos que a fizeram ser como é. Em entrevista exclusiva, o professor Ilmar Rohloff de Mattos, doutor em História Cultural e especialista em História do Brasil, conta sobre a evolução do Rio de Janeiro desde a sua fundação.
Portal MultiRio - Que grandes acontecimentos o senhor destacaria como marcos da transformação social, política e administrativa da cidade?
Ilmar Rohloff de Mattos - Em 1763, o Rio se tornou sede do Brasil, que na época ainda era colônia portuguesa. O primeiro vice-rei afirmou então: “Esta cidade (...) pela sua situação e porto deve ser a cabeça do Brasil”. Diferentemente dos demais núcleos urbanos da América Portuguesa, o Rio não tinha muralhas; ao contrário, abria-se para o interior e também para o mar. Além disso, ocupava posição estratégica no Atlântico Sul, o que lhe possibilitava realizar trocas não apenas com o Reino, mas ainda com o litoral africano, com as Índias e com o estuário platino. Por causa desse perfil, sua história sempre esteve associada à do Brasil como um todo, e os marcos de transformação da cidade também refletem esse caráter cosmopolita. São eles: a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro; as reformas urbanas da capital federal realizadas pela administração de Pereira Passos e prosseguidas pelas administrações seguintes; e a transferência da capital da República para Brasília, em 1960.
Portal - O povoamento do Rio de Janeiro começou com as expedições exploradoras?
I.R.M. - As primeiras expedições a percorrer o litoral da Terra de Santa Cruz, nos anos imediatamente seguintes à expedição de Cabral, tinham como objetivo obter informações sobre as potencialidades naturais e humanas da nova conquista lusa, quer em termos mercantis, quer para a difusão do cristianismo, como se buscassem atribuir um valor à terra que não se restringisse somente à importância como ponto de apoio de reabastecimento de água e comida para os navios que seguiam para as Índias. Uma vez identificadas aquelas potencialidades, tratava-se de nomear suas localizações e registrá-las em suportes diversos (como os diários de navegação), contribuindo para a constituição daquilo que já foi denominado como “saber de marinharia”, fundamental para o futuro empreendimento colonial. Surge, assim, o Rio de Janeiro – um ponto no litoral onde não tardariam a conviver nativos, náufragos, degredados. No entanto, ainda não se tratava da cidade do Rio de Janeiro, algo bem diverso, cujo marco inaugural data de 1565, com a fundação da cidade por Estácio de Sá.
Portal - Quais os impactos para a cidade da chegada da Corte portuguesa?
I.R.M. - A partir de 1808, o movimento de entrada e saída do Rio de Janeiro tornou-se frenético: pessoas das mais diferentes procedências e condições, mercadorias as mais diversas, notícias vindas do interior da colônia ou do exterior, por via marítima. Todos se beneficiaram da abertura dos portos. John Luccock, um comerciante inglês que voltava à cidade após três anos de uma primeira estadia, espantou-se ao contemplar o Rio no alto da Ladeira da Misericórida, o primeiro logradouro da cidade e de onde era possível avistar os telhados do casario e os navios no porto: “Como esta cidade ficou grande!” De fato, a cidade crescia espacialmente, expandindo-se, embora de modo ainda tímido, em direção ao sul, por Glória, Catete, Laranjeiras e Botafogo; e em direção ao norte, pela Cidade Nova até São Cristóvão. Dos quase 50 mil moradores em 1808, passou para 112 mil em 1821. Um crescimento espantoso, devido não apenas aos fidalgos que migraram com a Corte (estimados entre 500 e 15 mil pessoas); mas também à atração exercida pela presença do rei D. João sobre as áreas vizinhas ou os pontos mais distantes do Brasil, das Américas e da própria Europa; e ainda, principalmente, à entrada anual de africanos escravizados, que nela permaneciam ou seguiam em direção ao interior. A presença marcante da escravidão – sobretudo negra, mas também indígena – contrastava com os novos hábitos e costumes vistos como civilizados, difundidos com a Corte, principalmente entre aqueles que compunham a “boa sociedade”, ou seja, brancos, livres e proprietários de escravos. Afinal, a cidade não deveria ser apenas a “cabeça” do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves; ela deveria ser também a capital do novo império que a Corte joanina pretendia fundar.
Portal - Como se deu a formação da população carioca?
I.R.M. - O fluxo de pessoas continua ainda hoje no Rio de Janeiro, renovando o tecido da cidade, pondo em destaque tanto as diferenças entre os inúmeros “cariocas” quanto as marcantes desigualdades entre os mesmos, em qualquer dos momentos de uma já longa trajetória. Não há um ponto de chegada, como a ideia de formação, necessariamente.
Portal - Como a transferência da capital para Brasília impactou o Rio?
I.R.M. - A transferência da capital da República para Brasília, em 1960, ofereceu aos cariocas de todos os quadrantes a oportunidade de vivenciar um novo “Dia do Fico”, quase uma nova fundação, pois, como escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade: Rio antigo, Rio eterno, / Rio – oceano, Rio amigo, / O governo vai-se? Vá-se! / Tu ficarás, e eu contigo. O Golpe de 1964, de modo até certo ponto contraditório, possibilitou à cidade reafirmar em um cenário inteiramente diverso sua condição de centro político - de fato - do país, ao menos em duas ocasiões: a Passeata dos 100 Mil, em 1968, e o Comício das Diretas Já, em 1984. Já o espantoso crescimento demográfico dos anos 1960, de outra parte, reafirmaria as desigualdades de todo tipo, que desde sempre distinguiram a cidade.
Portal - Quais foram as grandes mudanças do quarto centenário (em 1965) aos 450 anos?
I.R.M. - O centro da cidade sofreu um esvaziamento; uma expansão acelerada ocorreu pela Zona Sul, pela Zona Oeste, pela região da Leopoldina e pela Baixada Fluminense, reafirmando as diferenças e desigualdades espaciais da cidade, vindas de longa data. O número de favelas cresceu; houve políticas de remoção das mesmas da Zona Sul da cidade; o transporte rodoviário foi privilegiado, em particular os automóveis, expressão também de uma nova utopia urbana; surgiram novas identidades e atores políticos, como as associações de moradores. À Cidade Maravilhosa contrapunha-se outra cidade – a Cidade Partida. Uma denominação que, referida aos estudos de sociologia urbana, servia para caracterizar a dividida estrutura socioeconômica da cidade em classes sociais, bairros e grupos culturais, muitas vezes apresentada por meio da oposição morro e asfalto. Comemorações são sempre a oportunidade de refletir a respeito do que se comemora, literalmente. E assim também pode ser aqui e agora. Em trabalho extremamente original, o carioca Bruno Carvalho nos instiga a refletir sobre o Rio de Janeiro como “cidade porosa” (porous city). O ponto de partida do professor da Universidade de Princeton é o questionamento da existência de “dois Rios de Janeiros”: o Rio como capital do Brasil e, em suas próprias palavras, “outra cidade” - um ambiente semiurbano de negros de pés descalços e de um ritmo mais melancólico e descontraído, apresentando-se a Cidade Nova como a fronteira entre ambas. As reformas urbanas (como aquela que levou à abertura da Avenida Presidente Vargas) ao rasgar o tecido dessa “outra cidade”, realocando moradores e destruindo seus vínculos comunitários porque eram apresentados como problemas ou entraves ao progresso, ignoravam a porosidade entre ambas as cidades e o valor dessa “outra cidade”, cuja vitalidade é fundamental na composição cotidiana do Rio de Janeiro – razão por que seus moradores devem ser escutados.