Pergunte a uma criança ou adolescente o significado de uma palavra ou expressão que ela desconhece. E, então, onde ela pensaria em buscar essa resposta?
A verdade é que, atualmente, até mesmo adultos recorreriam ao Google – e não necessariamente à página de um dicionário on-line.
Perderam espaço, também, os dicionários físicos. Seja pelo tempo demandado para se encontrar um verbete entre letras miúdas e uma infinidade de palavras, ou pela dificuldade de se disponibilizar um exemplar para cada aluno.
No entanto, projetos desenvolvidos em unidades da Rede Pública Municipal de Ensino vêm resgatando, se reapropriando e “reinventando” o dicionário, por meio de propostas de incentivo à leitura e à escrita, reforço de conceitos e conteúdos curriculares, além de iniciativas voltadas ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais.
Glossário de História no Ensino Fundamental II
Na E.M. Rio das Pedras, o professor de História Francisco Aruajar propõe que os alunos do 7º ao 9º ano elaborem um glossário com vocabulários e conceitos da disciplina.
O trabalho é feito ao longo do ano, de maneira contínua e individualizada. Cada aluno escreve da sua maneira, em seu próprio caderno. Depois, o docente avalia a atividade.
“Durante as aulas, vão aparecendo muitos conceitos e palavras que os alunos não sabem muito bem o que são. Normalmente, peço para sublinharem a lápis os termos que irão para o glossário. Explico previamente o conceito e, depois, falo para consultarem o livro e um dicionário. Então, eles avaliam a melhor definição para aquele contexto e escrevem em seus cadernos o que consideram a explicação mais apropriada, sem copiar mecanicamente”, diz Francisco, comentando que, em sala, costuma contar histórias, fazer brincadeiras e propor encenações às crianças. “O pouco e simples feito com cuidado é muito”, acrescenta.
Francisco destaca que, a partir do 6º ano, grande parte dos conteúdos apresentados pelos professores incluem palavras que fogem da compreensão dos alunos. Por isso, ele tenta convencer as crianças a também elaborar glossários de outros componentes curriculares.
“O vocabulário é fundamento de qualquer disciplina. Quando um aluno fala ‘professor, eu sou burro’, fico com o coração partido. E, muitas vezes, percebo que a maior dificuldade para o entendimento da matéria, sensivelmente ou severamente, se dá pela falta de domínio do vocabulário. O vocabulário diminuto é o primeiro ponto para o aluno começar a vida tropeçando”, considera o professor, lamentando que dicionários físicos não sejam distribuídos individualmente aos alunos.
Língua Inglesa: dicionário de figuras
Na mesma escola, a professora de Língua Inglesa, Cristiane Salvino, desenvolve, com os alunos do 6º e do 7º anos, o Picture Dictionary. Nele, os alunos expressam, por meio de figuras, o sentido de palavras, termos e frases trabalhadas nas aulas.
A proposta é realizada durante todo o ano letivo e, a cada bimestre, a professora avalia e corrige os cadernos de cada um.
“É, na verdade, um glossário. Os alunos gostam muito porque é livre. Eles podem desenhar, recortar, colar e fazer composições de figuras, desde que aquilo expresse o conteúdo, no contexto da aula. Assim, eles usam a criatividade para se expressar, sem escrever nada em português”, explica a professora.
“Eles gostam muito da atividade. Ficam tão contentes que querem fazer o dicionário de A até Z! Fazem além do que eu peço”, conta Cristiane, que, por conta do isolamento social, tem acompanhado as tarefas dos alunos por meio da plataforma Microsoft Teams.
Dicionário colaborativo no Padlet
O dicionário também figurou nas aulas da professora de Língua Portuguesa Luciane de Assis Almeida, que atua nas escolas municipais Ary Barroso, em Brás de Pina, e Cardeal Câmara, em Vigário Geral, ambas da 4ª CRE.
Depois de ler com os alunos o poema Dicionário, de José Paulo Paes, a professora propôs que, assim como o autor, os alunos do 6º ano criassem suas próprias definições sobre algumas palavras.
“No poema, José Paulo Paes apresenta uma definição para cada palavra escolhida, explorando a ironia, o bom humor e o jogo de palavras. Quis aproveitar essa sacada e promover uma discussão sobre verbetes com os alunos, sobre o que é definir uma palavra, como ser objetivo etc.”, explica a docente, que também se inspirou no livro Mania de explicação, de Adriana Falcão.
A proposta foi desenvolvida no Padlet, ferramenta on-line que permite a criação de um mural ou quadro virtual dinâmico e interativo para registrar e partilhar conteúdos multimídia.
“Busquei uma maneira de interagir melhor com os alunos e fazê-los escrever. Nesse mural virtual, apenas eu preciso me logar. Então, compartilho o link para os alunos colaborarem. E eles podem abrir o link e escrever a qualquer momento.”, explica a professora.
Luciane selecionou palavras iniciadas com cada letra do alfabeto. Além de escreverem definições objetivas, os alunos puderam adicionar gifs, imagens ou músicas.
“O formato é de um dicionário on-line com recursos extralinguísticos. Depois que os alunos escrevem, faço uma mediação, quando necessário, pedindo que sejam mais específicos. E uma curadoria, para que não seja publicado nada indevido ou ofensivo”, pontua a docente.
Ela destaca que, nesse processo, pôde observar aspectos curiosos.
“Uns alunos foram muito objetivos, outros tiveram muita dificuldade em descrever algo aparentemente simples. Isso mostra que esse tipo de atividade, com um gênero diferente, é uma prática necessária na escola. Acabamos padronizando, propondo que escrevam um texto com dez linhas, uma narrativa, um poema… Quando temos gêneros menores que, sobretudo numa aula virtual, fluem muito bem”, aponta Luciane.
A professora pediu, ainda, que os alunos assinassem seus nomes abaixo da definição que criaram. “É bom para saberem que dicionários não são apenas palavras esparsas, há autores envolvidos. Como Aurélio, que foi um dos maiores pesquisadores da nossa língua.”
Dicionário na Educação Infantil: um livro “de peso”
No EDI Tenente Pedro de Lima Mendes – Tijolinho (11ª CRE), na Ilha do Governador, quando os alunos têm alguma dúvida sobre o significado de uma palavra, ou quando a professora Patrícia Fuzeto quer aguçar a curiosidade dos pequenos sobre algum termo, um reforço “de peso” entra em cena.
Um dicionário Houaiss grande e antigo, vira atração.
“Criança gosta de livro, né? E esse é bem diferente de todos os que eles estão acostumados a ver. O dicionário que eu uso não tem figuras, encanta por ser grande, muito pesado e por ter páginas fininhas. Causa impacto e eles ficam muito interessados”, comenta Patrícia.
A docente conta que senta em roda com os pequenos, pergunta o significado de uma palavra para eles, anota no quadro e, depois, todos buscam no dicionário. Em uma dessas ocasiões, as crianças até usaram uma lupa.
“Uso o dicionário para eles perceberem que, se a gente escuta uma palavra e não sabe o que é, existe um livro para pesquisarmos e tirarmos a dúvida sobre o significado dela. Um livro com todas as palavras da nossa língua. As crianças têm que ter a oportunidade de conhecer, desde pequenas, um dicionário. É tão simples conseguir uma informação pelo celular, que fico pensando: será que as famílias têm dicionários em casa?”, questiona.
Dicionário das crianças
Quando atuou no EDI Tijolinho, a professora Alexandra Paixão, atualmente na E.M. Maestro Francisco Braga (11ª CRE) registrou uma atividade que, segundo ela, faz parte de sua rotina na Educação Infantil.
No vídeo, compartilhado na página da escola no Facebook, com o título “Dicionário das crianças”, a professora pergunta o que é “música” para o pequeno Guilherme. O aluno define, escreve a palavra como acredita ser e faz um desenho para ilustrar.
“Gosto muito de conversar com as crianças porque acho que elas têm muito a dizer. Sempre que falam uma palavra que não seria, normalmente, do vocabulário delas, que podem estar simplesmente repetindo, pergunto o que significa”, expõe a educadora.
“Quando pergunto ao Guilherme o que é ‘música’, da maneira dele, ele chega muito próximo da resposta. Quando ele desenha a nota musical, ele sabe o que significa. Ele responde do jeito que ele consegue e sabe responder. E a resposta dele não está errada”, acrescenta.
Um dicionário para falar sobre sentimentos
O livro Dicionário Ilustrado de Sentimentos, de Fernanda Salgueiro, com ilustrações de André Mendes, foi concebido como um projeto de incentivo à leitura e publicado em 2017 (1ª edição).
Acabou se tornando, também, uma ferramenta pedagógica muito usada por professores para trabalhar as habilidades socioemocionais em sala de aula.
No livro, a autora paranaense reúne 39 sentimentos, de A a Z, com definições e exemplos baseados em situações vividas por meninos e meninas. O projeto se deu a partir de pesquisa realizada com mais de 300 crianças, de 8 a 12 anos, em escolas, bibliotecas e organizações não governamentais (ONGs).
Nesses encontros, Salgueiro realizou rodas de conversa, propôs atividades de desenho e até mesmo partidas de “adedonha” (ou “adedanha”).
“Nessa brincadeira, propus a coluna ‘sentimentos’. Caiu a letra N e uma criança disse ‘nada’. E é lógico que se trata de um sentimento! Quantas vezes a mamãe pergunta o que ela tem e ela responde ‘nada’?!”, diverte-se a escritora.
“Certa vez, visitei uma escola e uma criança me perguntou: se ‘nada’ é sentimento, ‘tudo’ também é?”, relata a autora, destacando a riqueza de, também, aprender com as crianças.
Com o material em mãos, Salgueiro escreveu os verbetes, incluindo termos apresentados pelos pequenos, como “bugado”. E, também, palavras desconhecidas por eles, como “jururu” – sugerida por um fotógrafo que participou de um dos encontros.
As ilustrações do livro foram inspiradas em desenhos e colagens feitas pelas crianças durante a pesquisa.
Professora de Sala de Leitura no Ciep Nação Rubro Negra (2ª CRE), no Leblon, Jacqueline Paizante, conheceu a obra por intermédio de uma amiga, em um momento em que buscava um livro para tratar de habilidades socioemocionais com as crianças.
Sensibilizada com o dicionário, a docente decidiu usá-lo com turmas da Educação Infantil ao 6º ano, adequando as propostas e a linguagem para cada faixa etária.
Por conta da pandemia pelo coronavírus, no entanto, Jacqueline teve que mudar seus planos e adaptá-los à realidade do ensino remoto. Acabou direcionando o trabalho apenas para o 4º ano.
“Até para nós, adultos, é muito difícil falar sobre o que sentimos. Imagine para crianças?! Com o isolamento social, pensei que era ainda mais importante trabalhar a questão dos sentimentos com elas”, comenta a professora.
Em vídeos gravados por ela e compartilhados no WhatsApp e na plataforma Microsoft Teams, Jacqueline abordou os conceitos do livro, conversou sobre vários sentimentos com as crianças e pediu que elas escrevessem e desenhassem o que estivessem sentindo.
Por meio de fotografias, ela acompanhou o trabalho dos pequenos.
“Foi uma ‘experiência piloto’. Pretendo dar continuidade quando retomarmos as aulas presencialmente. A ideia é fazer um dicionário por turma e, quem sabe, propor que os alunos também entrevistem seus familiares, em casa. E perguntem para um adulto, por exemplo, como ele descreveria felicidade”, planeja a professora.