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— Mapas decoloniais e o ensino de Geografia no bairro Maré
16 Junho 2021 | Por Fernanda Fernandes
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Mapa da Maré, elaborado por Luiz Lourenço (Imagem: Arquivo pessoal do professor)

Trabalhar com mapas pode ser uma estratégia para estreitar as relações dos estudantes com o lugar onde eles vivem. De 2015 a 2019, o professor Luiz Lourenço apostou nessa ideia para estimular um “reencantamento” de adolescentes do 9º ano do Ensino Fundamental com o território da Maré.

Professor de Geografia, ele criou uma metodologia de ensino que envolve o uso de mapas e a prática de cartografia social. A proposta parte de “mapas decoloniais” que representam fatores geográficos presentes no cotidiano dos estudantes.

“A ideia era mostrar que o território deles é diverso. Tem violência, mas tem felicidade. Tem tristeza, mas tem situações de liberdade”, explica o professor.

O trabalho foi desenvolvido no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), organização não governamental (ONG) que atua no segmento de ensino, comunicação, memória e cultura, e que é uma importante referência no bairro.

O professor atua no Ceasm desde 2013, à frente de turmas de cursos preparatórios para concursos do Ensino Médio e para o vestibular.

Luiz Lourenço, que também trabalha na rede particular de ensino, desenvolve pesquisa de catálogo bibliográfico de trabalhos acadêmicos sobre o bairro e participa, como geógrafo, do Observatório de Conflitos Urbanos na Cidade do Rio de Janeiro.

Assim, ele afirma conseguir criar conexões entre a sala de aula e algumas discussões que permeiam a academia.

O que são “mapas decoloniais”?

Segundo Luiz Lourenço, o pensamento decolonial emergiu nas universidades da América Latina, sobretudo a partir dos anos 2000, e busca produzir outras formas de enxergar o mundo, outras epistemologias, ideias, conceitos e narrativas.

O docente explica que a decolonialidade tem um conceito central que é o pensamento de fronteira: como o indivíduo, em uma margem, no limite entre dois mundos, pensa e se articula visando uma transformação.

“Eu vi muito isso na minha vida particular. Sou um homem negro, filho de uma mulher preta retinta e de um homem branco. Sempre estive na fronteira de ser ‘o moreno do papai’ e o ‘nego da mamãe’. Embora fosse da favela, estudei em colégios religiosos de classe média-alta, onde eu era o único aluno negro do turno da manhã. E sempre fui um bom aluno. Pensava: ‘sou o aluno número um da turma, mas que costuma ir ao baile, ou o favelado que joga tênis? Procurava saber quem eu era, uma pessoa que transitava entre dois mundos”, relembra Luiz.

Partindo das ideias do pensamento de fronteira e da colonialidade do poder, o professou começou a conceber uma metodologia de ensino na qual pudesse criar outra representação da favela, especificamente do bairro Maré, local onde nasceu, mora e atua.

“Não fazia sentido dar aulas de Geografia usando mapas de urbanização de Paris. Então, passei a produzir mapas locais, e não apenas com os limites do bairro, como é dado pela Prefeitura. A Maré tem 16 favelas. Comecei a fazer mapeamentos orgânicos para mostrar aos meus alunos o que é, de fato, a Maré: onde começa, onde termina, onde se divide. Isso é uma perspectiva decolonial: produzir outras representações, que não aquelas hegemônicas. Não vou fazer um mapa da Baía de Guanabara ou reproduzir mapas de cidades brasileiras. Vou reproduzir o mapa da favela. Aliás, produzir, porque não existe”, expõe o professor.

Cartografia social e mapas afetivos: as etapas do projeto

A dinâmica do trabalho com os alunos partiu de quatro perguntas, respondidas de forma individual por cada um.

1. Qual é o lugar de violência/medo?
2. Qual é o lugar de lazer/liberdade?
3. Qual é o lugar de tristeza?
4. Qual é o lugar de felicidade?

As respostas foram organizadas e usadas como subsídios para a construção do que foi chamado de um “mapa sensorial”, produzido a partir das sensações indicadas pelos próprios estudantes.

Depois, o mapa foi exposto em sala de aula. E teve início uma conversa sobre os lugares marcados e suas características.

Mapa sensorial da Maré elaborado pelos alunos do curso preparatório para o Ensino Médio do Ceasm, em 2017 (Imagem: Arquivo pessoal do professor Luiz Lourenço)

 

O professor conta que a cartografia social permitiu que, por meio dos mapas, os alunos expressassem informações que não falariam naturalmente.

“O que um aluno diz que é local de violência ou de medo, outro diz que é de liberdade e de lazer. Na sala se constrói um conflito que é positivo, porque gera um debate de ideias sobre o local. O que eles escrevem e representam no mapa são informações que eles não têm coragem de nos falar diretamente”, comenta.

Luiz Lourenço ressalta que o resultado do trabalho “transbordou” para outras áreas de conhecimento. Ele percebeu que o conteúdo produzido com os alunos poderia ser usado por professores de outras disciplinas e, ainda, por psicólogos.

“Quando um aluno diz que o lugar de tristeza é a casa dele, essa é uma informação que pode ser trabalhada por uma equipe de psicólogos. Para tentar entender que tipo de situação ocorre no ambiente familiar que leva o aluno a expor isso no mapa”, exemplifica.

Produção de mapas a partir de conhecimentos locais

A partir dessa atividade, segundo Luiz Lourenço, foram surgindo outros mapas, usados ao longo de todo o ano com os estudantes.

“Não posso explicar os modais de transporte do Rio de Janeiro para os meus alunos da Maré se alguns deles nem saem do bairro direito. Não posso falar de metrô ou de anel rodoviário, sem antes falar do mototáxi que está dentro da favela. O meu aluno, às vezes, é o mototáxi. Ele é portador de conhecimento. Defino a representação com o objetivo de criar analogias entre o que é local – mototáxi – e os modais mais amplos”, argumenta.

O trabalho desenvolvido no Ceasm acabou se tornando tema da monografia da conclusão de curso de Luiz Lourenço. A experiência também foi relatada no artigo Cartografias da decolonialidade: o ensino de geografia no bairro Maré, publicado na Revista Giramundo.

Atualmente, o projeto foi interrompido por conta da pandemia da Covid-19, já que a metodologia pressupõe contato e a “tecnologia do afeto”, segundo o professor.

Rolé na Penha: mapas afetivos e turismo comunitário

Na E.M. Bernardo de Vasconcelos (4ª CRE), na Penha, o professor de História Wander Pinto desenvolveu com seus alunos o projeto Rolé na Penha.

A proposta partiu da construção pelos alunos de mapas afetivos do trajeto entre suas casas e a escola. A partir daí, eles elaboraram dois roteiros turísticos do bairro da Penha, com o objetivo de apresentar e contar a história de lugares do bairro a estudantes de outras regiões.

Para saber mais sobre o projeto, confira a entrevista com Wander Pinto na série Dando Ideia, disponível em podcast e em vídeo.

 
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