Você já ouviu falar em gordofobia? A gordofobia é definida como “repúdio ou aversão preconceituosa a pessoas gordas, que ocorre nas esferas afetiva, social e profissional”, segundo o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras.
Trata-se de um tipo de preconceito e de discriminação que leva à exclusão social e que nega acessibilidade à pessoa gorda.
“Nós, pesquisadores do corpo gordo, entendemos a gordofobia como um estigma estrutural e cultural que é transmitido em muitos e diversos espaços e contextos na nossa sociedade contemporânea. O pré-julgamento vai acontecer com a desvalorização, a humilhação, a inferiorização, ofensas e até restrições aos corpos gordos e a pessoas gordas de modo geral”, explica Malu Jimenez, professora, doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e autora do livro Lute como uma gorda: gordofobia, resistências e ativismos, fruto de sua tese de doutorado.
A pesquisadora destaca que comportamentos gordofóbicos são atitudes que reforçam o preconceito, estereótipos que acabam culminando em situações degradantes e constrangedoras que marginalizam a pessoa gorda e a excluem socialmente.
“Esses comportamentos acontecem na família, na escola, no trabalho, na mídia, nos consultórios, no hospital, na balada, em qualquer lugar da sociedade. Os exemplos são muitos: não haver roupa do nosso tamanho nas lojas, nem maca adequada ou manguito para aferir a pressão nos hospitais. Também, a dificuldade desse corpo para usar o transporte público... Lembrando que somos 57% da população no Brasil”, diz Malu Jimenez.
Um corpo gordo pode ser saudável?
Segundo Malu Jimenez, é um grande erro acreditar que um corpo gordo não pode ser um corpo saudável.
“É uma discussão bem profunda. E isso mostra o quanto a gordofobia está internalizada nas pessoas, seja quando acreditam que um corpo gordo não pode ser saudável e/ou quando acreditam que um corpo magro é saudável. Nem sempre é assim. Inclusive, temos que questionar o que significa ser saudável em uma sociedade totalmente doente”, critica a pesquisadora, comentando que no Brasil, “o país do agronegócio”, não existe soberania alimentar e a maioria da população não tem acesso a três refeições por dia.
A especialista destaca que uma pesquisa sobre alimentação realizada com alunos do 9º ano, no Rio de Janeiro (2012), apontou que crianças gordas comiam melhor do que as magras porque existia uma exigência das famílias e de profissionais para que elas comessem melhor.
“É um dado muito interessante para observarmos como nossa maneira de encarar a relação entre corpo e alimentação está totalmente equivocada”, afirma.
Efeitos da gordofobia
O preconceito contra a obesidade compromete a saúde, dificulta o acesso de pessoas acima do peso ao mercado de trabalho e a tratamentos adequados, afeta suas relações sociais e, também, a saúde mental. Os dados são de um periódico científico publicado em 2020 pela Nature Medicine, e assinado por mais de 100 instituições de todo o mundo, incluindo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), que divulgou a informação em seu site.
Segundo artigo publicado pela SBCBM, estudos apontam, ainda, que crianças e adolescentes com sobrepeso ou obesidade, vítimas de bullying, são significativamente mais propensos a sofrer com ansiedade, baixa autoestima, estresse, isolamento, compulsão alimentar e depressão se comparados com adolescentes magros.
Como falar sobre gordofobia na escola
É necessário e urgente que se fale sobre gordofobia nas escolas, inclusive desde a creche, segundo Malu Jimenez.
“A gordofobia tem se apresentado de forma muito cruel. Em piadinhas nas aulas de Educação Física, em eventos e festas, nas cadeiras da escola e até no próprio uniforme, que muitas vezes não chega a uma numeração maior. Há muitos depoimentos de crianças gordas que não participam de intervalos e de brincadeiras por causa do bullying e dos discursos de ódio”, pontua.
De acordo com a pesquisadora, é importante encarar o tema com seriedade e investir em formações para toda a comunidade escolar – professores, diretores, coordenadores, profissionais da limpeza, merendeiras e familiares.
“É preciso levar esse debate para dentro da escola. Acredito que, inicialmente, por meio de formações promovidas por estudiosos e pesquisadores do corpo gordo e da gordofobia. Existe no Brasil um campo de pesquisa chamado Estudos Transdisciplinares das Corporeidades Gordas. E há muitos pesquisadores em universidades brasileiras. Como educadores, temos que ter cuidado para não reproduzir qualquer tipo de exclusão”, sugere.
“Desde criança, aprendemos em casa com a família e, depois, nas escolas, que o corpo belo e saudável é o corpo magro. Infelizmente, o corpo gordo nas Instituições de Ensino segue a Gordofobia estrutural e, portanto, repete a exclusão e estigmatiza a criança/adolescente/adulto gordo, causando fobias, medos, traumas, bullying e suicídios. Os profissionais da educação repetem a estigmatização, e de maneira geral não sabem lidar com o preconceito, culpando na maioria das vezes a própria vítima.”
Artigo Gordofobia na escola: lute como uma gordinha, que integra o livro Corpo, corporeidade e diversidade na educação (Culturatrix, 2021).
Para abordar o tema com as crianças, Malu Jimenez propõe que se aposte na ludicidade. A pesquisadora desenvolve um projeto chamado Lute como uma gordinha, no qual realiza oficinas com crianças de 5 a 14 anos.
“Conto histórias cuja protagonista é uma menina gorda, que sofre gordofobia dentro da escola. E, junto com as crianças, tentamos resolver esse problema. Existem muitas maneiras de trabalhar esse tema, desde a primeira infância até a fase adulta.
Ao lado de algumas professoras da cidade do Rio de Janeiro, como Cláudia Reis – que já fez parte da SME-Rio –, Malu Jimenez desenvolveu uma cartilha sobre gordofobia na escola. As docentes estão em busca de apoio financeiro e/ou parcerias para imprimir o material e levar o projeto a escolas, promovendo formações com professores e com toda a comunidade escolar.
Para a professora Andréa Barros, coordenadora da Coordenadoria da Primeira Infância da SME-Rio, a melhor forma de levar o assunto às escolas é, primeiro, conscientizando as pessoas sobre o que é a gordofobia.
“É importante falar que uma pessoa nem sempre é obesa porque é relaxada, desleixada. E nem sempre vai ser a pessoa doente. Primeiro, é preciso conscientizar o adulto. Vamos parar pra pensar... Quem estamos escolhendo para ser ‘a linda rosa juvenil’, nas peças sobre a primavera? Quem estamos escolhendo para ser o matinho? Precisamos desconstruir uma série de coisas. Depois de desconstruirmos, teremos condições de fazer alguma proposta com as crianças em sala de aula”, aponta Andréa Barros.
A docente conta que já presenciou e vivenciou muitas situações de gordofobia na escola e, até hoje, no ambiente de trabalho, por meio de “trocadilhos”, “brincadeiras” e até pela falta de acessibilidade.
“Vivencio situações gordofóbicas pelo menos uma vez na semana. Os lugares não estão preparados para isso. Passei vergonha no Theatro Municipal do Rio e fiquei sentada no chão, por exemplo. Trabalho no Nível Central e a minha cadeira não me comporta porque sou uma mulher gorda e alta. Se tenho uma reunião e preciso ficar mais de duas horas sentada, é uma luta. Preciso me levantar toda hora porque não suporto ficar tanto tempo em uma cadeira que não está preparada para receber meu corpo”, exemplifica.
“Descobri que ser gorda não é um problema, que isso não diminuiria o meu valor. Li, busquei conhecimento para me entender como mulher potente, bonita, sexy, apesar de ser gorda. Entendi que ‘gorda’ é uma característica, e não um palavrão”, reforça a professora.
Recife aprova leis contra a gordofobia que preveem formação e adaptação de escolas
No Recife, em setembro de 2021, duas leis municipais foram aprovadas: uma oficializa o "Dia Municipal contra a Gordofobia" (10/9); e a outra pretende incluir a pauta da luta antigordofóbica na emenda do ensino público municipal, com ações temáticas e uma melhor formação do corpo escolar sobre o assunto. Além disso, a lei também prevê a compra de cadeiras estudantis para pessoas gordas e adaptação de espaços em comum para alunos obesos.
Dessa forma, a capital pernambucana tornou-se a primeira do Brasil a ter legislação específica para o combate à gordofobia.
“Atuação do poder público é essencial nesse contexto. É preciso que o debate entre na esfera pública municipal, estadual e federal. Estamos falando sobre projetos de acessibilidade, direitos básicos e direitos humanos. E não adianta colocar cadeiras, adaptar os espaços, se não for feita uma formação com a comunidade escolar, para que todos entendam a importância desse debate e da acessibilidade dessas pessoas”, defende Malu Jimenez.