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Desde o tempo das cavernas
31 Julho 2015 | Por Gilberto de Abreu
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bisao wikimedia commonsA prática de rabiscar paredes é tão remota que nos remete aos tempos da Pré-História, quando os homens da caverna usavam gravetos e pigmentos naturais na representação dos animais, dos instrumentos de caça e dos próprios indivíduos. Um imaginário tão surpreendente que, não por acaso, mobiliza até hoje a atenção de antropólogos e pesquisadores das mais diversas áreas. Seria a arte rupestre uma espécie de pichação?

O que dizer, também, dos desenhos decorativos encontrados nas paredes das câmaras mortuárias na antiga civilização egípcia? Sabemos, hoje, que tais ornamentos tinham a função de contar a história de vida do ente querido e reverenciar as divindades que o conduziriam à vida eterna. Seriam os egípcios os primeiros grafiteiros?

E o aspecto político de tais linguagens, onde entra nessa história? Um ponto para quem respondeu “na Roma Antiga”. A necessidade de o Império informar novas leis e de o povo protestar contra elas levou os romanos a realizarem escritas nos muros da cidade.
Nem mesmo a erupção do vulcão Vesúvio, responsável pela destruição de Pompeia e Herculano, foi capaz de danificar tais escritas. Um minucioso trabalho de pesquisa, que consumiu anos e anos de estudo, trouxe à luz o teor daquelas “pichações”: eram propagandas políticas e xingamentos públicos. Havia até poesia.

Imagine-se, então, na Idade Média. Você sabia que os padres daquele período também recorriam à pichação como forma de protesto? Sim, eles recorriam. No intuito de expor uma ideologia, criticar doutrinas contrárias às suas ou mesmo difamar governantes, invadiam os conventos “rivais” para deixar seu recado.

Como vimos até agora, a história da humanidade está repleta de casos que nos ajudam a refletir sobre o impacto causado pelas inscrições nas paredes.

E como não lembrar o Muro de Berlim? Construído no início da década de 1960, com o objetivo de dividir a Alemanha em duas – Oriental e Ocidental –, o Muro é seguramente o exemplo mais emblemático. O lado oriental, controlado pelo regime socialista da então União Soviética, manteve-se intocado por quase 30 anos.

O mesmo não se pode dizer do lado ocidental, de responsabilidade da democracia capitalista dos Estados Unidos, inteiramente tomado por pichações e grafites de protesto. Quando foi derrubado, no final da década de 1980, muita gente – alemães e turistas do mundo inteiro – queria levar um pedaço do Muro para casa.

Paris, 1968. A revolta estudantil de março daquele ano contou com uma artilharia pesada: a tinta spray, utilizada pelos jovens para intervir, com frases de protesto, nos muros das universidades. Eles criticavam o governo, as instituições, o cerceamento à liberdade de expressão. Pela primeira vez na História, os órgãos de imprensa atentaram para a linguagem da pichação.

A notícia correu o mundo e chegou aos Estados Unidos. Por lá, os primeiros indícios de pichação não tinham qualquer fundamentação política. A inscrição em paredes foi adotada por gangues de rua, como forma de autoafirmação e demarcação de território. A “praga” alastrou-se rapidamente, tomando de assalto os guetos negros de cidades como Filadélfia, Los Angeles e Nova York.

As tags (assinaturas) de hoje são como as de outrora: normalmente constituídas de três ou quatro letras, podendo vir acompanhadas de números, símbolos ou outro elemento gráfico.

59 Rivoli Paris 28

Picho, logo existo!

A prática do bombing – inscrever uma tag o maior número de vezes, por toda a cidade – surge do desejo pessoal do pichador de tornar-se cada vez mais conhecido (e respeitado) por aqueles que vivem nas ruas.

Foi adotada, então, uma estratégia transgressora, que mudou por completo a paisagem urbana: invadir as estações de trem – e posteriormente as de metrô – a fim de pichar os vagões de passageiros.

O tamanho do estrago era proporcional à ousadia dos pichadores, que atuavam sempre na calada da noite, para não serem identificados ou fichados pela polícia. Na pressa, uns pintavam sobre as portas; outros exploravam abaixo das janelas. Os mais destemidos arriscavam a liberdade, ou a própria vida, ao pichar toda a extensão do vagão.

Como tudo tem seu limite, a repressão do poder público não tardou a chegar: multas, prisões, remoção imediata das pichações, novas diretrizes para o comércio da tinta spray, que passou a ser proibido para menores de 18 anos. Mas quem disse que isso adiantou?

Diante de tais medidas, os pichadores investiram em outros suportes. De uma hora para outra, suas tags começaram a surgir em caminhões de carga (os mais disputados, pela mobilidade interestadual), muros de terrenos baldios, prédios particulares, monumentos públicos, etc.

A opinião pública posicionou-se contra, afirmando tratar-se de um bando de baderneiros, vândalos, fora da lei. O bombardeio, no entanto, não foi capaz de conter a proliferação dessa linguagem, desde a África pós-Apartheid até a América Latina.

O Brasil adere ao picho

As décadas de 1970 e 1980 marcaram o surgimento das primeiras pichações no Brasil. A cidade de São Paulo, considerada o berço nacional da pichação, viu nascerem duas tags que muita gente não esquece: Cão Fila e Juneca. Cabe lembrar que vivíamos em pleno regime militar, e qualquer “coisa” que fugisse ao controle era passível de investigação.

Para surpresa dos investigadores e felicidade geral da nação paulistana, o significado de tais inscrições não tinha nada de subversivo (além do fato de terem sido pichadas em espaço público, sem o devido consentimento). Chegava a ser lúdico.

Cão Fila (que às vezes era acompanhada de "Km 26") era a alcunha de Tozinho, proprietário de um canil situado no Km 26 da Estrada do Alvarenga, em São Bernardo do Campo. Ele escrevia nos muros a fim de divulgar o seu negócio. Esperto, não? Juneca, por sua vez, era o simples apelido de um pichador que se tornou, com o tempo, um grafiteiro de renome.

A irreverência não era um atributo exclusivo dos paulistanos. Em 1977, o universitário carioca Carlos Alberto Teixeira, então com 17 anos, lançou moda nos muros da Zona Sul, com a enigmática inscrição Celacanto provoca maremoto. Subversivo? Também não.

A frase que tanto encucou a polícia e os militares fazia menção a um diálogo extraído da série japonesa National Kid, um sucesso na TV brasileira desde os anos 1960. Um fenômeno entre os jovens, e cult até os dias atuais, trazia combates entre heróis futuristas e seres pré-históricos, abissais ou de outro planeta.

"Não se aventurem nas profundezas dos oceanos. O celacanto, quando se enfurece, emite grandes ondas de ódio", advertia um sinistro oceanógrafo a um grupo de jovens exploradores.

Em entrevista publicada no blog Catalisando.com, o próprio Carlos é quem conta como a brincadeira foi crescendo e ficou famosa a ponto de aparecer nos noticiários da época: “Um dia, após a aula, peguei o giz e enchi a sala com tal representação. Era na parede, no quadro-negro, no chão, no teto, enfim, enchi a sala de aula, e aquele negócio virou um símbolo. Na época, eu tinha 17 anos, e fazia esse grafismo em tapume de obra, o que gerava um contraste legal do giz branco com a madeira de coloração escura. Depois, comecei a comprar caneta hidrocor, conhecida como pincel atômico”.

O passo seguinte, conta ele em sua entrevista, foi ensinar os amigos a reproduzir a pichação. Com o advento da tinta spray, formou-se uma equipe que chegou a totalizar 25 pessoas. Teve gente pichando até em Washington e em Paris.
Nesse meio tempo, também no Rio, outra pichação surgiu para dividir as atenções: Lerfá Mú. A expressão foi cunhada por outro estudante da PUC-Rio, mesma universidade em que Carlos estudava.

A turma do Lerfá Mú também se organizou em um coletivo, a fim de ampliar o espectro das pichações. Em pouco tempo, estava tudo dominado: Copacabana, Ipanema, Leblon, Gávea, etc.

Celacanto provoca maremoto e Lerfá Mú chegaram a topar uma trégua, mas deixaram de lado a “brincadeira” para concluir os estudos e conquistar uma vaga no mercado de trabalho.

Relembrar nunca é demais: no Brasil, a pichação é considerada vandalismo e crime ambiental, nos termos do artigo 65 da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais), que estipula pena de detenção de três meses a um ano e multa, para quem pichar, grafitar ou, por qualquer meio, conspurcar edificação ou monumento urbano.

Alguns juízes vêm adotando a aplicação de penas alternativas, como o fornecimento de cestas básicas a entidades filantrópicas ou a prestação de serviços comunitários pelo infrator. Em Porto Alegre, policiais procuram enquadrar os pichadores também em formação de quadrilha, possibilitando penas maiores.

Grafite: uma linguagem criativa

Keith HaringA noção do grafite como linguagem artística se dá com o movimento hip-hop, surgido nos Estados Unidos na década de 1980. Para os amantes dessa cultura, pintar com tinta spray tem o mesmo peso que dançar como um b-boy (dançarino de break), improvisar como um MC (mestre de cerimônias) ou tocar como um DJ.

A sobreposição dessas linguagens influenciou a cultura pop norte-americana e, por conseguinte, os jovens de todo o planeta. O grafite determina a estética dos videoclipes, das capas de disco, dos figurinos dos artistas, das revistas e de programas de televisão.
Muitos associam o interesse dos jovens norte-americanos pelo grafite nos anos 1980 à crise por que passavam a academia de belas artes e as escolas de arte em geral. Entediados com a vida nas universidades, muitos estudantes trocaram os livros pelas ruas, com a certeza de que lá, livres dos cânones formais, tinham muito mais a aprender.

Pergunte a um grafiteiro, mesmo hoje em dia, onde ele aprendeu o que sabe. Salvo raras exceções, a rua surgirá como resposta. O que para muitos parecia uma atitude escapista acabou se revelando um movimento sem precedentes.

Expoentes do grafite no cenário norte-americano, Jean-Michel Basquiat e Keith Haring foram os primeiros a conquistar o reconhecimento do circuito de arte. Ambos beberam na fonte de Andy Warhol, o pai da pop art, e viveram ao máximo seus 15 minutos de fama. Morreram precocemente, em decorrência das drogas e da Aids, respectivamente.

Responsável pela introdução do estilo expressionista/abstrato no grafite, Basquiat tornou-se, depois de morto, um dos artistas mais disputados nos leilões de arte. Haring, por sua vez, valeu-se do grafite para difundir mensagens positivas e de suporte à comunidade gay, vitimada pela Aids. Com a morte de Haring, sua obra passou a ser licenciada em benefício de uma ONG que leva seu nome e é voltada para crianças soropositivas.

Jean Michel BasquiatUma curiosidade: o termo “arte de rua” foi cunhado pela primeira vez em 1985, no livro Street Art, de Allan Schwartzman, lançado pela editora Doubleday. Schwartzman acompanhou de perto a atuação dos grafiteiros e se tornou um dos mais influentes consultores de arte contemporânea de Nova York.

Passados mais de 30 anos, a arte de rua segue por aí, fazendo história nas paredes do mundo inteiro. E do Brasil também.

O grafite no Brasil

Um dos pioneiros do grafite no Brasil, o italiano Alex Vallauri tornou-se conhecido no final dos anos 1980, quando começou a grafitar, sempre no anonimato, a figura de uma bota preta de salto fino e cano longo. Seu alvo eram as fachadas dos prédios e arranha-céus paulistanos.

Em paralelo, Vallauri passou a reproduzir a paisagem urbana em uma série de cartões-postais, que ele próprio fazia e enviava a artistas e amigos. A famosa bota vinha lá, carimbada sobre a imagem dos arranha-céus. Frases alusivas à invasão da bota na capital paulistana atiçavam ainda mais a curiosidade das pessoas.

As proposições de Vallauri conquistaram a opinião pública, e sua arte tornou-se reconhecida internacionalmente. O grafite conquistava, enfim, um lugar de respeito na cultura nacional.

Grafite carioca

Rio de Janeiro, 2015. Quem anda pelas ruas da cidade já deve ter percebido: tem grafite na paisagem. O Rio está ganhando novas cores, novos traços, novos contornos. Parte dessa novidade se deve aos projetos de reurbanização capitaneados pela Prefeitura do Rio; e parte cabe aos artistas de rua, cuja criatividade vem “agregando valor” às já conhecidas belezas naturais.

De “inimigos número 1” do poder público a parceiros estratégicos no redesenho da paisagem carioca, os grafiteiros de hoje são comissionados para realizar suas intervenções urbanas. Optar por um caminho diferente do da pichação (cujo único propósito é inscrever um nome) foi o que ampliou seus horizontes: investir no conhecimento trouxe novas técnicas, materiais e estilos.

A velha vontade de deixar uma marca na cidade deu lugar a um projeto mais ambicioso: desenvolver um estilo próprio, singular, e ganhar a vida fazendo grafite. Novamente inspirados pelas culturas pop e urbana, os grafiteiros souberam fazer a diferença: o grafite carioca é o mais amigável, colorido e inspirador de todo o Brasil.

  • A intervenção urbana por meio do grafite se revela eficiente em diferentes níveis:
  • Revitaliza localidades, emprestando-lhes uma nova ambiência.
  • Devolve a autoestima aos moradores de áreas menos favorecidas.
  • Promove a contemplação e o diálogo da população.
  • Gera oportunidades de empregos e negócios.

Com o incentivo do poder público, o subsídio de empresas privadas, o licenciamento de obras e a absorção pelo mercado de arte, a turma do grafite tem conseguido legitimar sua arte e, mais importante, viver dela.

O boom do grafite tem propiciado oportunidades também para profissionais de outras áreas. É o caso de produtores culturais, publicitários, guias turísticos, fotógrafos, documentaristas, estilistas, etc. A lista é extensa.

Grafite zona portuaria Toz e outros 8 artistas

O céu é o limite

Se ainda restam dúvidas sobre a popularidade dessa arte urbana, olhe para cima: com sorte, você pode avistar um avião comercial inteiramente grafitado pela dupla Gustavo e Otávio Pandolfo, os reis do grafite brasileiro, reconhecidos nacional e internacionalmente.

Em cerca de 20 anos de atuação como OsGêmeos, a dupla de irmãos idênticos já levou seus desenhos a países como Chile, Cuba, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Japão e Lituânia. Por aqui, a arte de OsGêmeos já esteve em exposição no Centro Cultural Banco do Brasil e ainda pode ser vista, em caráter permanente, no Museu do Pontal, no Recreio dos Bandeirantes (Zona Oeste do Rio).

ABC do grafite

All city – Quando um grafiteiro ou sua crew escrevem suas tags por toda a cidade, diz-se que eles estão all city.

Tag – Assinatura pessoal, feita normalmente com lápis de cera ou caneta hidrocor. É a forma mais básica de grafite, embora os grafiteiros tenham certo preconceito por quem apenas escreve seu nome, sem criar nenhuma arte, desenho ou personagem.

Crew – Coletivo de grafiteiros, cuja sigla é composta normalmente por três letras, e pode ou não vir acompanhada de símbolos, personagens ou números (correspondentes à rua em que se mora).

Bombing – Impregnar uma determinada parede, área ou região com tags e throw-ups.

Stencil – Molde de plástico, papelão ou qualquer outro material resistente, com um desenho recortado sobre ele, para que possa ser reproduzido em qualquer superfície plana.

Street art – O termo “arte de rua” foi cunhado em 1985, no livro Street Art, de Allan Schwartzman.

Wild Style – Estilo complexo, feito a partir de letras interligadas, adornadas por flechas e conexões.

Gilberto de Abreu, jornalista e especialista em artes visuais.

 
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