Para nós, o conhecimento dos lugares de memória ancestral africana refere-se àquilo que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004) chamam de “políticas de reparações, de reconhecimento e valorização das ações afirmativas”, uma vez que o direito à memória também é reparação histórica.
As referidas Diretrizes apontam para a necessidade de políticas específicas para a educação dos negros, e, sem dúvida, a valorização do patrimônio histórico-cultural afro-brasileiro é parte fundamental desse processo.
Preconizamos que a nossa experiência pedagógica se insere naquilo que as Diretrizes reconhecem como sendo como uma pedagogia de combate ao racismo, uma vez que o direito à memória também é um caminho de construção de uma sociedade mais justa.
Aqui queremos trazer um olhar mais atento em relação ao recorte de cor/raça no que diz respeito ao perfil do aluno da EJA. Assim, é importante destacar que as turmas de EJA são formadas, majoritariamente, por estudantes pretos(as) e pardos(as), em decorrência das desigualdades acumuladas na experiência social da população negra no processo de escolarização.
Detentores de capital cultural desvalorizado socialmente, muitas vezes já tiveram uma vida escolar marcada pela descontinuidade em seus processos de escolarização. Essas características impõem uma reflexão constante a nós educadores quanto ao papel que a escola ocupa no debate sobre as desigualdades raciais.
Se considerarmos também que esta desigualdade se traduz na falta de representatividade destes grupos nos currículos e programas, entendemos como é importante promover, tal como preconizado pelas diretrizes que regulamentaram a Lei 10639/03, o conhecimento dos temas relacionados à história e à cultura africana e afro-brasileira.
Trazemos como relato a experiência de uma aula externa transdisciplinar que dê ênfase à participação dos atores históricos negros. Busca desenvolver seu universo cultural e social, permitindo que ela/ele reflita e observe criticamente os aspectos funcionais do território em que vive e estuda, além de celebrar a memória dos territórios da diáspora negra presentes na cidade do Rio de Janeiro.
Além disso, a/o estudante poderá colher material significativo no conteúdo das aulas: linguagem oral, escrita, ciências, história e geografia, entre outras. Poderá também conhecer os processos de transformação que os territórios sofrem pela ação da interferência humana e entender-se como protagonista nesses processos de mudanças. Apropriar-se das memórias dos territórios é reconhecer-se nele.
Neste trabalho, iremos abordar a aula transdisciplinar de Educação Patrimonial, que se trata de uma aula de campo.
Essa aula é uma visitação à Pequena África, nome dado por Heitor dos Prazeres a uma região do Rio de Janeiro compreendida pela zona portuária do Rio de Janeiro, bairros da Gamboa e Saúde, onde se encontra a Comunidade Remanescentes de Quilombos da Pedra do Sal, Santo Cristo, e outros locais habitados por escravizados alforriados e que, de 1850 até 1920, foram conhecidos por Pequena África.
A visita inclui o Cais do Valongo, local onde desembarcaram milhares de africanos escravizados do século XVIII e o início do século XIX. É um local de memória que remete a um dos mais graves crimes contra a humanidade: o sistema escravista atlântico no Brasil.
No percurso de nossa aula, visitamos também o IPN – Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, criado em 13 de maio de 2005, com a missão de pesquisar, estudar, investigar e preservar o patrimônio material e imaterial africano e afro-brasileiro, cuja conservação e proteção seja de interesse público, com ênfase ao sítio histórico e arqueológico do Cemitério dos Pretos Novos, sobretudo com a finalidade de valorizar a memória e identidade cultural brasileira em Diáspora.
Com o objetivo de reafirmar a herança e a resistência culturais afro-brasileiras, finalizamos nosso percurso pedagógico na emblemática Pedra do Sal. Esse território evoca a presença de importantes personalidades afro-baiano-cariocas do período pós-abolição e primeiras décadas do século XX, como Tia Ciata, Pixinguinha, Donga, João da Baiana, e sua participação fundamental na criação do samba, nas religiões de matriz africana, na capoeira, no trabalho na estiva, dentre outras atividades. Hoje, a Pedra do Sal mantém a tradição de reduto das expressões culturais negras e rodas de samba.
Após a realização da aula externa, a/o estudante é convidada/o a elaborar uma reflexão escrita sobre o que foi visto e a registrar suas impressões.
Temos muitas narrativas impactantes de nossas/os estudantes, que nos levam a pensar o quanto a apropriação e a participação na vida desses patrimônios podem contribuir para elaborar um pensamento crítico e engajado. É preciso conhecer a história para ter ferramentas para questionar o tanto que ela interfere e modifica o conhecimento de mundo do nosso alunado. Em outras palavras, é através da visão de mundo ampliada que uma pessoa pode ir além, ressignificar os acontecimentos, e refletir sobre a forma como eles impactam a vida dos homens/mulheres, usurpam seus direitos e os/as mantém na condição de subserviência.
(OBS: Por falta de espaço, alguns dos depoimentos se encontram em arquivo anexo.)
Transcrevemos algumas narrativas de estudantes sobre a aula externa:
• “A aula de hoje nos mostrou como tão próximo de nós existem histórias tão importantes, que não são mostradas, valorizadas e, muitas vezes, escondidas. Sem dúvida, o memorial Pretos Novos é algo triste de ver, mas nos mostra um pouco da história, como eram tratados, algo muito importante e impactante.”
• "Percebi que a importância da cultura africana na construção da sociedade brasileira não permitiu a mudança dos pensamentos atuais, visto que a repercussão nas escolas e espaços sociais não procuram enfatizar o legado deixado por este povo. Triste isso! O que mais me impactou foi conhecer a história do museu Pretos Novos. Sobre a barbaridade ocorrida no período mais intenso do tráfico de cativos africanos, trazidos a força para o trabalho escravo.”
• “Hoje descobri que temos uma dívida muito grande com os escravos africanos, que nos ensinaram muita cultura. E como nossos governantes tentam apagar nosso passado."