Desde a década de 1980, as tatuagens viraram um modo de expressão das mais diversas tribos urbanas da cidade. Essa forma de marcar o corpo é uma prática bastante antiga, utilizada desde as sociedades primitivas. Seus significados, contudo, têm suas particularidades conforme o momento histórico e os grupos sociais envolvidos. No Rio de Janeiro, nas últimas décadas do século XIX e no início da República, por exemplo, tatuar o braço com a coroa imperial era uma prática comum entre a população negra que reivindicava uma sociedade mais igualitária, participativa e democrática.
Tal prática revela, pelo menos, que, nos tempos da Abolição da Escravatura e da Proclamação da República, uma parcela expressiva dos negros postou-se ao lado dos monarquistas. Mas por que isso acontecia, se era exatamente sob a égide do governo imperial que eles viviam as restrições de liberdade e o trabalho compulsório? A resposta, certamente, não é simples, mas grande parte dela pode ser encontrada no próprio ideário dos republicanos. Em um artigo publicado em março de 1889, no Diário de Notícias, Rui Barbosa, por exemplo, um dos ícones da República, acusava a família imperial brasileira de “irresponsabilidade arrojada”, por ela motivar os negros libertos à participação política direta.
Outros notáveis abolicionistas não pensavam muito diferente de Rui Barbosa. De acordo com Gilberto Maringoni, doutor em História Social e professor da Universidade Federal do ABC, o pensamento dominante do grupo republicano era o de que os negros precisavam de homens cultos e influentes para defendê-los. A emancipação deveria ser guiada pelo Parlamento e não feita nas ruas, praças e quilombos, sob pena de se ter um cenário imprevisível. Até mesmo o radical abolicionista José do Patrocínio, que pregava a revolução e a participação das ruas, fazia a ressalva de que o processo deveria ser feito de “cima para baixo”, pois “o povo não tinha força por si só”.
A simbologia das camélias
A campanha pela abolição da escravidão foi a primeira manifestação do país a mobilizar pessoas de todas as camadas sociais. No período, surgiram, inclusive, novas formas de resistência. Entre elas, o “quilombo abolicionista”, que, segundo o historiador Eduardo Silva, diferenciava-se do modelo tradicional de quilombo por não ser um esconderijo de guerra, e sim uma instância de intermediação entre negros fugitivos e a sociedade. Um exemplo desse novo arranjo participativo foi o Quilombo Leblond (às vezes também grafado Le Bloon), idealizado pelo português José de Seixas Magalhães, que cultivava camélias em sua chácara no Leblon, com o auxílio de escravos fugidos.
Bem relacionado no comércio e na corte, Seixas tinha a cumplicidade da própria família real. O Leblond costumava ser palco de batucadas animadas e de festas abolicionistas, nas quais, não raro, os participantes gritavam palavras de ordem como “Viva os escravos fugidos”, sem correrem o risco de sofrer maiores incômodos por parte da polícia. Afinal, contavam com a forte proteção da princesa Isabel. A chácara do português, aliás, fornecia, regularmente, camélias para a residência dela, nas Laranjeiras.
As flores, que sempre ornavam a capela da casa e a mesa de trabalho da princesa, acabaram se tornando um dos maiores ícones do movimento abolicionista carioca e conferiram um forte vínculo simbólico entre a família real e a causa da libertação dos escravos. E como se isso não bastasse, a filha do imperador e outras damas da corte também protegiam e acolhiam centenas de negros fugidos na cidade de Petrópolis. O imperador dom Pedro II ainda franqueava a entrada de alguns negros em recepções solenes no Paço Imperial – como era o caso do veterano da Guerra do Paraguai que se intitulava príncipe Obá II –, o que lhe conferia grande popularidade entre os cativos, os africanos e os crioulos (negros nascidos no Brasil).
A dureza das instituições
Apesar de toda a simbologia pró-abolicionista capitalizada pela família real, na prática, a vida dos negros nunca foi facilitada pelas instituições imperiais. Ainda no período da Regência (1831-1840), o chefe de polícia da corte, Euzébio de Queirós, organizou a instituição com base no princípio de que os negros alforriados e os africanos livres podiam ser presos, a qualquer momento, por suspeição de serem escravos fugidos, caso não conseguissem comprovar a condição de libertos.
Note-se que a norma foi baixada em tempos em que o tráfico negreiro já era considerado contrabando em função de um tratado entre Brasil e Inglaterra que passou a vigir em 1831. Segundo o historiador Sidney Calhoub, mesmo com as leis abolicionistas – como a dos Sexagenários, do Ventre Livre, etc. –, a rotina da ação policial na corte sempre reforçou a manutenção do domínio senhorial, o que só fazia aumentar as tensões entre escravos e escravocratas e as demandas dos negros junto ao judiciário e à sociedade.
República branca
Há 70 anos, Caio Prado Júnior, em seu livro História Econômica do Brasil, afirmava que o processo abolicionista teve mais a ver com a adequação das forças de trabalho ao novo modelo capitalista que se impôs no século XIX do que com uma reforma social. De fato, proclamada a República, as instituições do país se eximiram de qualquer política pública que promovesse a transição da condição de escravo para a nova forma de organização da vida e do trabalho. Muito pelo contrário, em nome do progresso civilizatório e sanitário, as manifestações religiosas e culturais dos negros se tornaram proibidas por lei, e os zungus e os cortiços do centro da cidade (onde muitos negros moravam) foram invadidos e demolidos quase que sumariamente para ceder espaço às reformas do prefeito Pereira Passos.
No contraponto disso, os fazendeiros de café – a elite econômica da época – receberam toda a proteção da recém-nascida República, que garantia a compra de seus produtos agrícolas a um preço estável, independentemente da situação do mercado mundial. Na verdade, a libertação dos escravos colocou no centro da cena o projeto e o ideário político da maioria dos abolicionistas republicanos, quase todos impregnados pelas mais novas teorias europeias de superioridade racial do europeu branco. Tais teorias, conforme Maringoni, legitimavam a pregação da liberdade do negro e, ao mesmo tempo, a exploração étnica e a corrida neocolonial em direção à África e à Ásia.
Essa forma de pensar veio acompanhada do projeto de branqueamento racial, para que o Brasil pudesse, um dia, chegar ao patamar da superioridade europeia. Isso afetou, inclusive, os asiáticos que imigraram para o país. No Parlamento Imperial, o republicano e abolicionista Joaquim Nabuco, por exemplo, se lamentava sobre o principal efeito da escravidão para a população brasileira: “saturá-la de sangue preto”. E para a superação do atraso do país, um dos mais representativos intelectuais da época, Sílvio Romero – historiador, filósofo, jornalista, político – propunha a constituição de uma “nova raça”, com supremacia branca, por meio de uma política que incentivasse a imigração europeia.
Com a proclamação da República, o papel dos negros no mercado de trabalho se consolidou como mão de obra descartável e de reserva, intrinsecamente barata. Diante de todo o contexto histórico, não fica difícil imaginar por que as tatuagens de coroa imperial viraram símbolo de uma utopia de igualdade entre parte considerável da população negra da cidade, muito embora a realidade dos crioulos, africanos e ex-cativos daquele tempo fosse mais próxima à da sabedoria de um velho ditado popular: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Alijados do processo político-eleitoral – já que a maioria era analfabeta e não podia votar – e sem políticas públicas que lhes dessem condições de usufruir da cidadania, tiveram que esperar algumas décadas para que a República começasse a integrá-los à vida social.
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