Durante a década de 1920, a imagem do negro de calça e paletó brancos, camiseta listrada e chapéu de palhinha virou um dos símbolos da identidade nacional e do Rio de Janeiro. Era o início da incorporação “oficial” da cultura negra pela República, por meio da figura do malandro, que unia agilidade corporal, atitudes e modo de vestir elegantes a uma espécie de rejeição ao trabalho servil e sub-remunerado. O personagem, com seu estilo de vida vinculado à boemia, ao samba, ao jogo, ao biscate e a outros ganha-pães informais, virou, inclusive, produto de exportação, quando Walt Disney – endossando a política de boa vizinhança do presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt – criou o Zé Carioca, o papagaio malandro e sambista que vivia de bicos e morava em um bairro humilde, com várias referências visuais à favela.
No livro Malandros, Notícias de um Submundo Distante, o jornalista Luiz Noronha afirma que o malandro carioca – definido por ele como “personagem-espetáculo que fazia do jogo da viração uma forma de arte” – surgiu na virada do século XIX para o XX. A figura, fruto da política da recém-proclamada República, teria nascido na “escuridão da vida nas favelas”, em contraste com a nova, iluminada e reformada Cidade Maravilhosa do prefeito Pereira Passos, que não só empurrou os mais pobres e os negros para os morros e áreas periféricas, como também proibiu, por meio de uma série de leis, quase todas as formas de expressão da cultura negra.
Em sua tese de doutorado, o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares afirma que o personagem do malandro carioca é uma espécie de deságue da cultura da capoeiragem desenvolvida no decorrer do século XIX, quando os grupos de capoeira haviam criado uma espécie de poder paralelo nas ruas da cidade. A maioria de seus integrantes era formada por ambulantes e negros de ganho, que a usavam não só como técnica de defesa, mas também para controle do comércio de seus produtos e serviços – como o fornecimento de tonéis de água às residências – em determinado território. Tais grupos eram conhecidos como “malta” e viraram um problema para a polícia imperial.
Capoeira na política
Durante a Guerra do Paraguai, os negros capoeiras eram presos, amarrados e metidos em fardas do exército para lutarem no sul como “voluntários da pátria”. Nos campos de batalha, seus golpes viraram lenda e, com a vitória brasileira, retornaram ao Rio como heróis. Muitos deles foram cobertos por medalhas de mérito e alforriados, mas logo estavam de volta às ruas, a fim de reaver seus territórios perdidos em função da ida para o front. Não demorou muito, também, para que entrassem no palco da política partidária.
Segundo Líbano Soares, um importante membro do Partido Conservador, Duque Estrada Teixeira, da base de sustentação do imperador Dom Pedro II, arregimentou os capoeiras da malta Flor da Gente, composta por inúmeros veteranos da Guerra do Paraguai, como cabos eleitorais, na eleição de 1872. E, à base de rabos de arraia, rasteiras e navalhadas, varreram dos palanques os candidatos do opositor Partido Liberal. Some-se a isso o prestígio que a família imperial conquistava, cada vez mais, junto à população negra, em função de seu apoio às leis antiescravocratas – como a do Ventre Livre, aprovada em 1871 – e ao engajamento da Princesa Isabel em iniciativas pró-abolicionistas e de apoio a negros fugidos.
“Por quase toda a década de 1870, o condomínio entre políticos monarquistas e negros capoeiras deu as cartas na Corte do Rio”, diz Líbano Soares, em seu artigo A Guarda Negra. Com a vitória dos liberais em 1878, iniciou-se uma forte campanha contra a capoeiragem, mas, enquanto a família imperial esteve no poder, não trouxe resultados. Porém, com a proclamação da República, a polícia encarcerou quase todos os negros capoeiras na prisão de Santa Cruz, em menos de um ano. De lá, foram enviados para Fernando de Noronha e não se ouviu mais falar deles. Apesar da luta típica dos negros ter sido dada como extinta na cidade, a prática da capoeira resistiu, embora de forma pulverizada e clandestina.
Em busca da alma popular
Com a inauguração da Avenida Central (atual Rio Branco), em 1904, e a instituição da norma de somente transitar por ela quem estivesse em traje completo (paletó, gravata, chapéu, sapato...), os negros logo aprenderam que precisavam se vestir bem para impor respeito. E assim, com a melhor roupa e todo engomados, frequentavam a Festa da Penha, um dos maiores pontos de encontro dos bambas e da malandragem, nas duas primeiras décadas do século XX. Lá, Tia Ciata e outras baianas montavam suas barraquinhas de quitutes, os cordões e ranchos de carnaval faziam suas batucadas, os compositores de choro, maxixe e samba lançavam suas músicas e, após o culto, os capoeiristas abriam sua roda. Em meio a uma série de leis que proibiam as manifestações da cultura negra, a festa costumava acabar em confusão e, não raro, em confronto com a polícia.
Se, de um lado, as relações entre negros e a jovem República não eram muito boas – em razão da história de aliança entre capoeiras e família imperial, e das teorias de superioridade da raça branca que estavam em voga na Europa e haviam sido abraçadas pela maioria dos republicanos –, de outro, era cada vez mais premente para o Estado encontrar símbolos que criassem uma identidade nacional. Em meio a essas duas questões, artistas, intelectuais e jornalistas, em busca da “alma popular brasileira”, passaram a mediar a tensão entre negros e República, valorizando a cultura afro-brasileira. O argumento de que a capoeira era uma “luta nacional” começou a ganhar corpo, especialmente depois da vitória do Japão sobre a Rússia, em 1905. Se o jiu-jitsu era autêntico produto japonês, a capoeira havia de ser brasileiro. Nessa época, mestres das artes marciais japonesas passaram, inclusive, a viajar por todo o mundo para ensinar suas técnicas. No Brasil, enfrentaram capoeiristas e essa interação acabou resultando na modernização e no surgimento de novos estilos de capoeira.
A projeção do malandro
De acordo com Felipe Ferreira, pesquisador do Centro de Referência do Carnaval da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a ascensão do malandro à categoria de produto nacional começou a acontecer na década de 1920. Além da descoberta dos grupos de samba pela intelectualidade, empenhada em construir a “brasilidade”, deu-se início, no contexto internacional, e em especial nos Estados Unidos, uma onda de valorização da cultura negra. Lá, principalmente os adeptos do bebop e do jazz passaram a adotar um estilo extravagante e oversize de se vestir, como forma de afirmação da identidade racial e da individualidade. E aqui, os elegantes rapazes do morro começaram a agregar as camisetas listradas da então moda esportiva aos seus impecáveis e engomados ternos brancos.
Com a ascenção de Getúlio Vargas ao poder, a malandragem, enquanto “arte da viração” que rejeita os trabalhos sub-remunerados, precisou se adaptar à ideologia trabalhista do Estado Novo. Afinal, com a afirmação do rádio e a valorização da cultura nacional, abria-se um imenso mercado para os sambistas e músicos negros. E foi na década de 1940 que os malandros cariocas se aproximaram, em definitivo, dos nova-iorquinos, os zooties, definidos por ele como “uma espécie de malandro negro americano”. O modo de eles se vestirem – ternos amplos e calças largas, apertadas no tornozelo – é também adotado no Rio.
Mas mesmo na era de projeção da cultura negra pelas ondas do rádio, as rixas com a polícia não se encerraram. O sambista de breque Moreira da Silva narra com muito bom humor – na música Olha o Padilha – o procedimento das autoridades policiais da época para identificar o malandro: jogar um limão dentro de sua calça. Se a fruta não passasse pelo tornozelo apertado, estava imediatamente identificado um malandro e a calça era cortada, no ato, pelo policial.
Olha o Padilha
“Eu vinha, anteontem, lá da gafieira, com minha nega Cecília, quando gritaram:
– Olha o Padilha!
Antes que eu me desguiasse, um tira forte e aborrecido me abotoou e disse:
– Tu és o Nonô, hein?
– Mas eu me chamo Francisco. Trabalho como mouro. Sou estivador. Posso provar ao senhor. [...]
– Quem disse que és trabalhador? Tu és salafra, achacador! [...]
E jogou uma melancia pela minha calça adentro, que engasgou no funil.
Eu bambeei. Ele sorriu. Apanhou uma tesoura.
E o resultado dessa operação é que a calça virou calção”.
Fontes:
- O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Felipe Ferreira.
- Malandros: Notícias de um Submundo Distante. Luiz Noronha.
- A Capoeira Escrava no Rio de Janeiro: 1808 a 1850. Carlos Eugênio Líbano Soares.
- A Guarda Negra: a Capoeira no Palco da Política. Carlos Eugênio Líbano Soares.
- Da “Destreza do Mestiço” à “Ginástica Nacional”: Narrativas Nacionalistas sobre a Capoeira. Matthias Röhrig Assunção.
- História da Capoeira. Adriana R. R. Fontoura e Adriana C. de Azevedo Guimarães.
- A Capoeira na História. In: Revista de História. Assessoria de Imprensa do Iphan.
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