O enredo de 2018 da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro – Senhoras do Ventre do Mundo – foi o ponto de partida do projeto desenvolvido pela professora Luciana Guimarães Nascimento com uma turma de 5º ano da E.M. José Enrique Rodó, em Vila Valqueire (7ª CRE). No enredo, a escola apresenta heroínas famosas e anônimas, de diferentes épocas, que “carregam no gênero e na cor, suas conquistas”, como a Rainha de Sabá, a deusa Ísis, Teresa do Quariterê, Maria Felipa e Luiza Mahin. Assim, partindo do teaser lançado pela escola, da sinopse do enredo e da letra do samba, a professora levou para a sala de aula a história da mulher negra.
“Tenho como proposta didática exaltar o samba como fonte de conhecimento, contextualizando as letras das músicas com os conteúdos apresentados e valorizando esse elemento cultural negro na escola – que é um espaço ainda estruturado a partir de práticas eurocêntricas. Em outros anos, com outras turmas, já utilizei sambas de diferentes escolas para debater temas sociais, sobretudo relacionados a gênero e à raça, para aproximar o currículo das práticas culturais desenvolvidas no cotidiano dos alunos. Para eles, trabalhar com um enredo é novidade e a temática de carnaval deixa tudo mais lúdico”, explica Luciana, mestre em Educação e especialista em Educação das relações étnico-raciais (Cefet/RJ).
O trabalho desenvolvido por ela dialogou com o projeto político pedagógico da escola, desenhado em sintonia com a filosofia africana Ubuntu: “Eu sou porque nós somos”, que trata da importância das alianças e do relacionamento entre as pessoas.
“O racismo institucional ainda é muito forte. A escola é fundamentada a partir de políticas e ideologias de branqueamento. O currículo é sexista, patriarcal. Temos que tentar reverter isso para não reproduzir o mesmo, o que impossibilitou o reconhecimento da força da população negra na História do Brasil. Procuramos brechas, caminhos e possibilidades pra colocar isso em evidência.”
Como abordar a história da mulher negra em sala de aula
A proposta desenvolveu-se ao longo do ano, sobretudo nas disciplinas de Língua Portuguesa e História, partindo da análise de textos, com foco nos conteúdos históricos.
“No caso do samba, a estrutura favorece, é poesia, praticamente. Então, fomos trabalhando as estrofes aos poucos. Passei aos alunos a responsabilidade de pesquisar e exploramos bastante o gênero biográfico”, conta a professora.
Assim, Luciana abordou com a turma a construção da importância da mulher negra desde a pré-história: interpretou e desenvolveu conceitos associando os elementos da escola de samba, falou sobre mitologia africana e passou pela biografia de mulheres negras abolicionistas.
Ao tratar da abolição da escravatura, que completara 130 anos em 2018, a professora usou os sambas da Estação Primeira de Mangueira de 1988 – Cem anos de liberdade – e da Paraíso do Tuiuti de 2018 – Meu Deus, Meu Deus, está extinta a escravidão?.
Além disso, Luciana trabalhou com os livros Um Rio de Mulheres: a participação das fluminenses na história do estado Rio de Janeiro (REDEH), de Maria Aparecida Schumaher e Erico Vital Brazil; e Heroínas negras brasileiras, de Jarid Arraes.
Em suas aulas, também analisou expressões como “magia negra”, com apoio do poema homônimo de Sérgio Vaz; e buscou o reconhecimento e o fortalecimento da identidade negra ao enaltecer as diferentes tonalidades de pele encontradas no Brasil, usando o livro Por que somos de cores diferentes?, de Carmen Gil, e o giz de cera elaborado pela Uniafro (da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), com diferentes tonalidades de cor de pele.
“A proposta é fortalecer elementos culturais afro-brasileiros na escola, engrandecer a imagem da população negra, sobretudo das mulheres negras na sociedade brasileira, e desconstruir pilares que sustentam o racismo hoje – preconceito, estigmas e estereótipos –, a partir de práticas pedagógicas antirracistas”, reforçou.
Príncipe africano na escola: representatividade e autoestima
No Dia Internacional da África (25 de maio), cada turma apresentou conhecimentos construídos sobre um país africano. Na ocasião, a escola recebeu o príncipe de Benin, Aboubakar Traore, que realizou uma roda de conversa com as crianças apresentando características culturais de seu país.
“Os alunos ficaram impressionados. Um príncipe negro foge de todos os estereótipos apresentados a eles. Logo, sentiram uma identificação, já que a maioria das crianças na escola é negra. Perceberam que o príncipe se parecia com elas. Esse tipo de trabalho mexe muito com a autoestima, de um estudante cabisbaixo, que tenha mais dificuldades de aprendizagem, se ache incapaz ou não se reconheça como bonito, por exemplo. Mas acontece uma espécie de empoderamento: ele percebe que tem importância e pode alçar lugares socialmente reconhecidos”, afirma a professora.
Inspiração pedagógica: enredos do carnaval 2019
O enredo é a criação e apresentação artística do tema ou conceito escolhido por uma escola de samba. A partir dele, é definido como a história vai ser contada na Passarela do Samba. Neste ano, Luciana Nascimento pretende trabalhar com o enredo da Estação Primeira de Mangueira, História para ninar gente grande, que conta o lado não oficial de personagens e da História do Brasil.
“Dialoga bastante com o trabalho que eu desenvolvo há tempos, de mostrar que existe História com pessoas que não estão representadas nos livros didáticos; um trabalho fixo de valorização da identidade, sobretudo da mulher. E a escola é o melhor lugar para isso começar a acontecer”.
Outros enredos de 2019 que podem ser destacados são o da União da Ilha, A peleja entre Rachel e Alencar no avarandado do Céu, que parte do encontro ficcional de dois ícones da literatura cearense – Rachel de Queiroz e José de Alencar – para exaltar o estado nordestino; e o do Salgueiro, Xangô!, sobre o orixá, que traz possibilidade de abordagem sobre a valorização da história e da cultura africanas e debates sobre intolerância religiosa.