Mesmo com a retração do mercado editorial, em função da crise econômica e do fechamento de importantes livrarias, vem aumentando, gradativamente, o interesse dos leitores brasileiros pela literatura africana e afrodescendente. “Tem sido impressionante a procura por esses livros, nos eventos literários”, comenta Cristina Fernandes Warth, diretora da Pallas, editora que publica obras voltadas à cultura afro-brasileira desde 1975. Na última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), por exemplo, entre os cinco livros mais vendidos pela livraria oficial do evento, quatro eram de autores africanos ou afrodescendentes, oriundos de Portugal, Nigéria, Angola e Burundi.
Para a diretora da Pallas Editora e para Rogério Andrade Barbosa, professor de Literatura Africana da Universidade Cândido Mendes, esse novo interesse dos brasileiros é um dos efeitos da lei 10.639, de 2003, que instituiu o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas da rede pública.
Ele, também autor de vários livros infanto-juvenis premiados, entre eles Bichos da África e Contos africanos para crianças brasileiras, lembra do boom de editoras interessadas em publicar seus livros voltados à temática, escritos a partir de visitas sistemáticas à África, onde vai para pesquisar e ouvir as histórias tradicionais.
Segundo Cristina Fernandes Warth, a oferta de livros africanos e de afrodescendentes, realmente, aumentou muito porque, com a lei 10.639, mais editoras ficaram interessadas nesse nicho. Mas ela faz um adendo: o interesse maior ainda não vem da escola, por um problema estrutural, que começa nas universidades. Ainda há poucos pesquisadores de história, filosofia, cultura, literatura e artes africanas. Isso se reflete na formação dos docentes da Educação Básica. A situação tende a melhorar com o aumento da pesquisa universitária”, avalia.
Para ela, o crescimento das pautas afirmativas pelos afrodescendentes é, junto com a lei, um dos principais motivos para o aumento do número de leitores interessados. “Nossa editora sempre trabalhou em contato com as comunidades negras, principalmente do candomblé, porque percebíamos que sentiam grande necessidade de livros que falassem da cultura, da religião, da história, da identidade deles”, conta. Com as pautas afirmativas, e a consequente ampliação do debate étnico-racial na sociedade, o público interessado está se tornando cada vez mais abrangente.
Autores e autoras
Segundo o escritor Rogério Andrade Barbosa e a diretora da Pallas Editora, faz apenas 10 anos que a literatura africana passou a ser mais conhecida no Brasil. Mas muito antes disso, quatro autores da África – um negro, um árabe e dois de ascendência europeia – já haviam sido premiados com o Nobel de Literatura.
Escritores africanos que ganharam o Prêmio Nobel
. Wole Soyinka, Nobel de 1986. Poeta, romancista e dramaturgo nigeriano, que participou ativamente da independência de seu país, nos anos 1960.
. Naguib Mahfouz. Nobel de 1988. Romancista e roteirista egípcio que, a partir do cotidiano árabe, escreveu obras tidas como de caráter universal.
. Nadine Gordimer. Nobel de 1991. Escritora sul-africana, ativista contra o apartheid, com obras críticas à moral de seu país, marcada pela segregação racial.
. John Maxwell Coetzee. Nobel de 2003. Romancista tido como um dos maiores escritores vivos da língua inglesa, conhecido por sua crítica implacável à moral da sociedade ocidental.
Rogério e Cristina concordam que, atualmente, estão em grande alta as escritoras africanas. Entre elas, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que, em 2014, figurou por seis meses na lista de best-sellers do New York Times, com seu livro Americanah. A partir de uma história de amor, o romance navega por questões contemporâneas como a imigração, o preconceito racial e a desigualdade de gênero. Outra nigeriana que vem conquistando um público cada vez maior é Ayòbámi Adébáyò, que participou da Flip deste ano. Leitores relatam que sua primeira obra, Fique comigo, é uma montanha russa de emoções. Narra a história de um casal que decide manter um relacionamento monogâmico, mas cujo marido sofre pressões da família, para que siga a tradição cultural iorubá de poligamia masculina.
Outra autora em voga é Scholastique Mukasonga, de Ruanda, uma das sensações da Flip de 2017. Recentemente, ela lançou, no Brasil, seu livro de memórias Baratas, que, em forma de romance, trata do genocídio do grupo minoritário tutsi (do qual ela é integrante) pelos extremistas étnicos hutus, que em 100 dias assassinaram cerca de 800 mil pessoas, entre elas a família da escritora, que só sobreviveu, junto com seu irmão, porque se encontrava no Burundi.
A camaronesa Léonora Miano também tem sido bastante cortejada pela crítica literária. Já ganhou os prêmios Goncourt (o mais cobiçado na França) e Femina, por seus romances Contornos do dia que vem vindo e Estação das sombras, ambos editados no Brasil. Este último é baseado em um relatório da Unesco de 2010. A partir de personagens da tribo Mulongo, ela envolve o leitor numa contundente narrativa sobre o tráfico negreiro e a dizimação dos povos no Golfo da Guiné.
A moçambicana Paulina Chiziane, primeira mulher a publicar um romance em seu país, é uma das mais consagradas escritoras lusófonas. Seus romances envolvem um intenso debate sobre a identidade feminina. Em O alegre canto da perdiz, por exemplo, romance de 2009, a personagem Maria das Dores é abandonada pela mãe, Delfina, que renega suas origens étnicas, em busca de sua assimilação pelo sistema colonial.
Africanidades na escola
Foi pela necessidade de afirmação da identidade negra que a equipe da E.M. Gastão Monteiro Moutinho (7ª CRE) – localizada na comunidade da Boiúna, na Taquara – decidiu que, em 2019, “Africanidades” seria o tema da feira literária anual da escola. “Temos muitos alunos negros e pobres, que eram menosprezados e tinham dificuldade de autoaceitação”, lembra Patrícia Greco, diretora da escola.
Segundo ela, essa situação indicava a necessidade de trabalhar a questão da matriz africana, em sala de aula, mas a equipe tinha medo de tocar no assunto por causa da intolerância religiosa por parte da família de vários estudantes. “Amadurecemos a ideia e decidimos ensinar à comunidade escolar (incluindo, pais e responsáveis) que a religião faz parte da cultura. Finalmente, no ano passado, percebemos que já tínhamos condições de trabalhar o tema no maior evento anual da escola: a feira literária”, relata Patrícia Greco, diretora da escola.
O evento, realizado em maio passado, foi um sucesso. Cada série – da Educação Infantil ao 6º ano – trabalhou com um livro de temática africana. Os alunos ainda tiveram que se envolver em várias atividades: vídeo, debate, oficina, contação de história, escultura, peça de teatro... O maior ganho foi aquele que a literatura cumpre tão bem: o de tocar o coração das pessoas. “Muita gente ficou emocionada. Vários pais choraram, inclusive alguns bastante resistentes à cultura afro”, conta a diretora, que considera a redução do bullying na escola um dos saldos mais positivos do evento.
Lusófonos
Além das questões étnicas, a qualidade literária e o idioma comum também atraem os leitores brasileiros. Segundo Rita Chaves, professora de Literatura Africana da Universidade de São Paulo (USP), o romance e a poesia dos países de língua portuguesa do continente são, profundamente, marcados pela história, havendo, quase sempre, uma tensão entre o passado (as tradições culturais e a exploração colonial) e o presente. O engajamento dos escritores – sejam eles brancos, negros ou mestiços – nas lutas pela independência de seus países também é outra característica comum à produção literária nas décadas de 1950, 1960 e 1970.
Vencedor do Prêmio Camões de 1997, pelo conjunto da obra, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, conhecido pelo pseudônimo de Pepetela, é um desses. Filho de portugueses nascido em Benguela, foi guerrilheiro do Movimento Popular de Libertação de Angola e, em seu primeiro livro, As aventuras de Ngunga, de 1972, há um visível engajamento com os ideais revolucionários. As produções seguintes vão revelando sua desilusão com os rumos do país. Em seu último livro, Se o passado não tivesse asas, de 2016, os personagens, além de levarem o leitor a um mergulho nas últimas décadas da história de Angola, são um convite à reflexão sobre as terríveis contradições e fragilidades humanas.
Para completar a pequena lista de escritores africanos lusófonos, não podem faltar, segundo o escritor Rogério Barbosa Andrade, nem Mia Couto, nem José Craveirinha, ambos moçambicanos. O primeiro é tido como um dos recriadores da língua portuguesa, por incorporar vocábulos e estruturas linguísticas típicas de Moçambique. Em função disso, muitos o comparam a Guimarães Rosa. Já o segundo é considerado o maior poeta africano lusófono, com grande contribuição à formação da identidade moçambicana e à consolidação da poesia em seu país. Foi, em 1991, o primeiro autor do continente a ser agraciado com o Prêmio Camões.