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Resistência negra: Brasil teve quilombos de norte a sul
15 Abril 2021 | Por Larissa Altoé
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Casa de Negros, de Johann Moritz Rugendas, 1835 (Domínio Público)

Palmares é o mais conhecido dos quilombos brasileiros, mas o que poucos sabem é que as comunidades de escravizados fugidos do cativeiro foram a regra em todo o território, como explicou Flávio Gomes no livro Quilombos e Mocambos: uma história do campesinato negro no Brasil (2015).

Segundo o historiador da UFRJ, o movimento de se aquilombar contestava, na prática, o projeto colonial português e formou o que é hoje a grande massa trabalhadora do Brasil.

Flávio Gomes escreveu que os escravizados se aquilombaram para lutar pelas transformações de suas vidas e também das relações escravistas. Desse modo, eles não eram vendidos ou transferidos; evitavam o aumento do ritmo de trabalho e os castigos rigorosos; garantiam o cultivo de roças próprias; e eram considerados livres e possuidores da terra depois da morte de seus senhores.

Para fazer tais afirmações, o pesquisador levantou dados em documentos como o tratado proposto a Manuel da Silva Ferreira por seus escravos durante o tempo em que se mantiveram levantados em 1789, no Engenho de Santana, no Recôncavo da Bahia. Dizia o tratado: "meu senhor, nós queremos paz e não queremos guerra; se meu senhor também quiser nossa paz, há de ser nessa conformidade (…). Em cada semana nos há de dar os dias de sexta-feira e sábado para trabalharmos para nós, não tirando um destes dias por causa de dia santo. Para podermos viver nos há de dar rede, tarrafa e canoas. Não nos há de obrigar a fazer camboas e nem a mariscar. Para isso, mande seus pretos Minas. Para seu sustento tenha lancha de pescaria e canoas do alto. Faça uma barca grande para quando for a Bahia nós metermos nossas cargas para não pagarmos fretes. (…) Os atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com nossa aprovação. (…) Poderemos plantar nosso arroz onde quisermos (…) e poderemos cada um tirar jacarandás ou qualquer pau sem darmos parte para isso (…)".

Quem eram os quilombolas?

As comunidades de fugitivos da escravidão produziram histórias complexas de ocupação agrária, criação de territórios, cultura material e imaterial próprias baseadas no parentesco e no uso e manejo coletivo da terra.

De origens múltiplas, todos eles foram transformados – na visão dos europeus – em "africanos". Eram provenientes de microssociedades com chefias descentralizadas da Alta Guiné e da Senegâmbia, como de impérios e reinos do Daomé, Oyo, Ndongo, Ketu, Matamba e outros; ou de cidades como Uidá e Luanda, nas áreas ocidentais e centrais africanas, entre savanas e florestas.

No Brasil, ergueram fazendas e engenhos; plantaram cana-de-açúcar, café, milho, arroz, mandioca e algodão; retiraram ouro e prata de montanhas ou rios; além de ajudarem a desenvolver cidades e arrabaldes.

Tipos de quilombos

Muitas vezes, os escravizados de diferentes regiões da África fugiam coletivamente e formavam comunidades, procurando se estabelecer com base econômica e estrutura social próprias. Nas Américas, se desenvolveram pequenas, médias, grandes, improvisadas, solidificadas, temporárias ou permanentes comunidades de fugitivos.

No Brasil, os quilombos eram comunidades móveis de ataque e defesa. Não houve algo como um quilombo de resistência versus um quilombo de acomodação. Desde as primeiras décadas da colonização tais comunidades ficaram conhecidas, primeiramente, com a denominação "mocambos" e, depois, "quilombos". Eram termos da África Central usados para designar acampamentos improvisados, utilizados para guerras ou mesmo apresamentos de escravizados.

Os quilombos "eram sinônimo de transgressão à ordem escravista". As autoridades coloniais os chamavam de "contagioso mal" porque eram muitos, estavam por toda a parte e atraíam cada vez mais fugitivos".

Flávio Gomes é especialista no tema e a tese de doutorado dele na Unicamp (1997) A Hidra e o Pântano: quilombos e mocambos no Brasil (séculos XVII-XIX) encontra-se disponível na internet.

Quilombos no Rio de Janeiro

Os primeiros registros de quilombos no Rio de Janeiro são de 1625. Duas décadas depois, o Senado da Câmara já regulava os pagamentos dos capitães do mato que percorriam a cidade, os subúrbios e o interior atrás dos fugitivos. Em 1659, houve denúncias de continuadas fugas e estabelecimento de quilombos nas margens do rio Paraíba do Sul. Mais dez anos se passaram e os quilombolas encravados na Serra dos Órgãos preocupavam as autoridades, que temiam situações semelhantes em fazendas dos subúrbios da cidade, pois já eram registrados assaltos de quilombolas em Inhaúma e São Cristóvão.

No final do século XVII, os quilombolas habitavam as cabeceiras do rio Guandu e realizavam saques em fazendas da região. Entre 1711 e 1713, foram mobilizadas tropas contra os quilombolas de Santo Antônio de Sá (atualmente Itaboraí e adjacências), Magé, São João de Icaraí (Niterói) e Macacu (Cachoeiras de Macacu).

No litoral, um grande quilombo colonial se estabeleceu nas margens do rio Bacaxá, em Saquarema. Denúncias falavam de saques em fazendas e assassinatos realizados por grupos de mais de cinquenta negros armados com arcos e flechas, além de armas de fogo. Dizia-se que os quilombos eram antigos, com casas e roças bem situadas. Em 1730, foi preparada uma expedição punitiva. O governador da capitania do Rio de Janeiro, Luís Vahia Monteiro, autorizou a repressão. Foram reunidas tropas das vilas de Maricá, Saquarema e Santo Antônio de Sá (Itaboraí).

Na região da atual Baixada Fluminense, há registros de mocambos às margens dos rios Iguaçu e Sarapuí. As primeiras notícias dos mocambos situados no recôncavo da Guanabara datam do final do século XVIII, e durante todo o século seguinte as autoridades andaram às voltas com planos para combatê-los.

Conexões com a sociedade

Contrariando a imagem difundida de isolamento, os quilombos se articulavam com a sociedade, abastecendo até mesmo a Corte com lenha – principal combustível da época. Quilombolas que viviam no mangue do rio Iguaçu tinham conexões com taberneiros que compravam lenha deles, trocando por artigos de que precisavam. A lenha de mangue era muito bem paga na Corte. Os quilombos da Baixada Fluminense eram conhecidos como de Iguaçu, de Estrela e do Bomba.

Vendedor de Lenha com Marimba no Dedo, desenho de Joaquim Cândido Guillobel, 1814 (Domínio Público)

A região da Tijuca era marcada nos mapas coloniais com a designação "serra dos pretos forros" devido à quantidade de quilombos ali situados. Havia também mocambos nos subúrbios de Inhaúma, Irajá e Jacarepaguá, e, principalmente, na região da atual Lagoa Rodrigo de Freitas. Eram redutos de pequenos, móveis e inúmeros ajuntamentos quilombolas que atuavam nas artérias da Corte do Rio de Janeiro. Com a proximidade urbana, negociavam os produtos de suas roças e frutas silvestres com taberneiros, viajantes e escravos de ganho.

Os quilombos mantinham trocas econômicas com variados setores da população colonial, que incluíam, além dos taberneiros, lavradores, faiscadores, garimpeiros, pescadores, roceiros, camponeses, mascates e quitandeiras – tanto escravos como livres. Tais trocas, que nunca foram sinônimo de paz ou ausência de conflitos, sobretudo significaram experiências que conectavam toda a sociedade escravista, tanto aquela que reprimia como a que acobertava os quilombolas e suas práticas.

No século XIX, as posturas municipais (conjunto de normas, regras e imposições de penalidades aos infratores) em várias regiões reproduziam em vão os artigos que tentavam reprimir os contatos e o comércio de quilombolas nas vendas e tabernas das vilas.

Muitos quilombos existiram durante décadas ou mesmo séculos. Fazendeiros, autoridades e os próprios escravos sabiam que em algumas regiões havia comunidades de fugitivos longevas com gerações nascidas no próprio quilombo.

Minas Gerais e Bahia

As capitanias de Minas Gerais e Bahia foram, no Brasil, as regiões coloniais com o maior número de quilombos, em parte devido às suas características como áreas de plantation (monocultura) açucareira e economia mineradora, atividades fomentadas pela entrada de milhares de africanos escravizados por meio do tráfico atlântico.

Libertos, cativos e roceiros negros nas áreas rurais do sudeste escravagista (legenda feita pelo historiador da UFRJ Flávio Gomes). Foto de Victor Frond, 1861 (Domínio Público)

 

 

 

Em Minas Gerais, há indicações do uso sistemático de capitães do mato. A função deles era perseguir fugitivos de forma imediata e combater os pequenos quilombos recém-formados para impedir que se transformassem em grandes quilombos – com habitantes e estruturas – como Palmares. Autoridades coloniais discutiram abertamente sobre a melhor maneira de evitar fugas, destruir quilombos e punir os quilombolas. Centenas de fugitivos e quilombolas capturados foram marcados a ferro e fogo com a letra F nas costas e ombros. Essa era a marca do fugitivo.

Brasil afora

Os quilombolas trocavam produtos de suas lavouras e caçadas com vendeiros e também os escravos nas senzalas. Tentou-se proibir o comércio entre as povoações de algumas vilas, mas isso era de difícil controle, pois estava conectado com as economias de muitos mocambos.

Em Mazagão (Amapá), por exemplo, descobriu-se que os quilombolas estavam havia mais de quatro anos numa ilha de Gurupá onde tinham casas de pau a pique e colheita abundante de arroz e milho.

Outro caso documentado vem de Óbidos (Pará), onde um juiz ordinário relatou a prisão dos negros do mocambo, tendo sido achado com eles farinha, canoas e armas. Esse mocambo estava bem protegido pela geografia, pois para "sair para o dito mocambo era preciso atravessar um tabocal passando por um igarapé e, depois de atravessar, se gastam até três dias". Esses quilombolas negociavam na vila de Alenquer (Pará), levando estopa, breu, castanha e algodão, que trocavam por pólvora, chumbo, armas, ferramentas e panos para se vestirem.

A capacidade de articulação com escravos, roceiros e taberneiros transformavam os quilombolas em invisíveis.

E depois da abolição em 1888?

Flávio Gomes explicou que, com a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de1888, os vários quilombos (nessa época, verdadeiras microcomunidades camponesas) continuaram se reproduzindo, migrando, desaparecendo, emergindo e se dissolvendo no emaranhado das formas de trabalho do Brasil de norte a sul. O deslocamento permanente foi um traço marcante para várias famílias de libertos nas primeiras décadas do século XX. Através de arranjos de moradia e sustento, as primeiras gerações de libertos tentavam reconstruir territórios para si e suas famílias.

O termo "remanescente de quilombos" foi oficializado na Constituição de 1988. O artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) promulgou que "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos". O artigo 216 da Constituição instituiu o tombamento de documentos e sítios detentores de remanescências de antigos quilombos, determinando que sejam reconhecidos como patrimônio cultural da nação.

Resistência negra no Ensino Fundamental

O Portal MultiRio conversou com Sandra Marcelino, doutora em Educação pela PUC-Rio (2019) e integrante da Rede Carioca de Etnoeducadoras Negras, sobre a importância dos professores do Ensino Fundamental ensinarem sobre resistência dos negros na História do Brasil e a relação dessa prática na promoção da cidadania atualmente.

Sandra disse que "resistência" é palavra e também ação para o povo negro desde que chegou ao território do que hoje se chama Brasil. "A própria Lei 10.639, ampliada para a 11.645, é o resultado de uma luta na agenda política do movimento negro, que começou na década de 1970 e foi vitoriosa em 2003, apesar de não ser uma realidade em todas as escolas", pontuou a pesquisadora.

Para a educadora, o ensino sobre a resistência dos africanos escravizados no Brasil "influencia no despertar do pensamento crítico, na luta por direitos, na problematização do lugar social em que o sistema racista coloca a população negra – piores condições de vida, os mais baixos salários, desemprego, mortes prematuras e educação precária. Reconhecer a história africana e afrodescendente é subverter esse sistema que tenta aniquilar essa população de todas as formas. Quando uma criança aprende desde pequena que tem direito à educação de qualidade, por exemplo, ela se torna um jovem consciente e passa a defender o que por direito é seu: uma educação que visa crescimento, que estimula o pensar, que forma cientistas, professores, médicos e engenheiros negros. Essa consciência mobiliza o agir e lutar por políticas públicas que atendam com equidade. Cada negro e negra que passa a conhecer a sua história subverte a lógica racista, dominante, eurocêntrica, e passa a escrever a sua história e assinar por ela".

Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro

Desde janeiro, a SME-Rio conta com uma Gerência de Educação Étnico-Racial com o objetivo de fortalecer a educação antirracista nas 1.543 escolas da Rede. Joana Oscar, que está a frente da Gerer é mestre em Educação pela UFRJ e fez uma pós-graduação no tema em questão no Cefet. Joana conheceu o assessor da Gerer, Pedro Bárbara, no Coletivo Agbalá, formado por professores antirracistas que atuam em redes públicas de ensino.

A MultiRio participa da luta antirracista. No Portal, há diversos conteúdos que apresentam e discutem o tema, como a coletânea de Educação e Relações Étnico-Raciais; a roda de conversa Negra Luz e diversos #Educa.

 
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