ACESSIBILIDADE
Acessibilidade: Aumentar Fonte
Acessibilidade: Tamanho Padrão de Fonte
Acessibilidade: Diminuir Fonte
Youtube
Instagram
Ícone do Tik Tok
Facebook
Kwai
Whatsapp

Pequena África: reduzida no nome, gigante no legado
24 Fevereiro 2014 | Por Sandra Machado
Compartilhar pelo Facebook Compartilhar pelo Twitter Compartilhar pelo Whatsapp

praca22A África é um continente. Já a Pequena África, num certo sentido, foi uma espécie de mundo. Sua área geográfica começava no Porto do Rio de Janeiro e abrangia os atuais bairros da Saúde, Estácio, Santo Cristo, Gamboa e Cidade Nova, até a Praça Onze de Junho, que foi totalmente remodelada nos anos 1940 para a abertura da Avenida Presidente Vargas. O marco remanescente daquele período é a Pedra do Sal, no Morro da Conceição. Consagrada a oferendas pelos templos afro-brasileiros das redondezas, já desaparecidos, ela servia também de mirante para acompanhar a chegada dos navios à cidade.

Pequena África é um nome que se explica pela população predominante na localidade. Ao longo das décadas, segundo Roberto Moura, autor do livro Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro, aos africanos trazidos pelo tráfico diretamente para o Rio se juntavam os negros baianos libertos, alguns dos quais ex-combatentes da Guerra do Paraguai, que buscavam emprego na capital e eram acolhidos por aqueles que os precederam na rota da solidariedade, durante os anos de passagem do século XIX para o XX. Além de receberem moradia e comida, os recém-chegados ainda podiam manter viva sua tradição de origem, presente principalmente na música e no culto aos orixás. A contribuição daqueles homens e mulheres para a configuração contemporânea da cidade está mais viva do que nunca. Nada mais representativo da cultura carioca do que feijoada ao ritmo de samba.

PortoOs moradores da Pequena África se ocupavam com diversas atividades. Preparo e comércio de doces, além de corte e costura, eram predominantes entre as mulheres. Quanto aos homens, muitos buscavam o sustento como estivadores ou estoquistas dos armazéns. Nas casas de família, também eram muito requisitados. “Em 1890, dois anos depois da abolição, dos 74.785 empregados domésticos da capital, 41.320 eram negros; 21.009, brasileiros brancos; e 12.375, estrangeiros. Dos negros, 48% dos ativos trabalhavam nos serviços domésticos. A maioria estava submetida a um regime de subemprego, situação que era também permitida pela ‘proteção’ paternalista dos patrões, que mantinham sua boa consciência complementando os magros pagamentos com o fornecimento de roupas velhas e objetos usados, o que se torna uma solução de uso corrente entre as partes”, lembra Moura.

Em paralelo à luta pela sobrevivência, essa população combatia numa segunda peleja, pela preservação de suas festas religiosas e de entretenimento. O trabalhador encontrava tempo para ser também músico ou compositor, numa época em que o processo de profissionalização ainda engatinhava. O maxixe ia sendo substituído pelo choro, pelo samba e pelos ranchos de carnaval. Os clubes dançantes popularizavam a arte de Sinhô, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, Donga, Pixinguinha e Chiquinha Gonzaga. A abertura de contato com as elites se dava, essencialmente, por meio da música, mas não exclusivamente por ela.

 

Tia Ciata, a mãe que embalou a Pequena África

CiataTia Ciata, mãe de santo e cozinheira, morava na Praça Onze e exerceu uma função catalisadora de atração dos bambas. Sua casa se dividia em três camadas. Na mais profunda, que era o terreiro, aconteciam as batucadas de capoeira e candomblé. Na intermediária, havia o samba de partido-alto, que ficava nos fundos da casa. Na parte externa, de frente para a rua, eram feitos os bailes na sala de visitas. Dos três, apenas os bailes não eram proibidos pela polícia, embora necessitassem de uma licença da chefatura para se realizar. Mas Ciata contou com uma proteção a mais, em comparação com as outras tias que também gerenciavam pensões.

Batizada Hilária Batista de Almeida, a baiana desembarcou no Rio de Janeiro em 1876. Ciata tinha 22 anos e trazia nos braços a filha Isabel. Veio acompanhada de Norberto, o pai da menina. Na cidade, porém, se casou com João Batista da Silva, um negro culto, que chegou a cursar dois anos na Escola de Medicina da Bahia, sem conseguir se formar. Graças à esposa e ao presidente Wenceslau Brás, João conseguiu um cargo importante no gabinete do chefe de polícia, após ter trabalhado como linotipista no Jornal do Commercio e como funcionário público na Alfândega.

Segundo o neto do casal, Bucy Moreira, em depoimento ao pesquisador Roberto Moura, um negro chamado Bispo era motorista do chefe de polícia e tinha contato permanente com o presidente da República. Ao saber que nenhum médico conseguira curar uma ferida na perna de Wenceslau Brás, lembrou-se de Ciata de Oxum, que, num prazo de três dias, deu jeito no problema, com um tratamento à base de ervas.

casaciataQuando o presidente perguntou como poderia retribuir, Ciata pediu, apenas, uma colocação melhor para o marido, já que a família era numerosa – juntos, tiveram 15 filhos. “Quanto às festas, que se tornam tradicionais na casa de Ciata, a respeitabilidade do marido, funcionário público depois ligado à própria polícia como burocrata, garante o espaço que, livre das batidas, se configura como local privilegiado para as reuniões”, afirma Moura. Foi na Pequena África que Ismael Silva fundou a primeira escola de samba do Rio de Janeiro. Batizada de Deixa Falar, ela fez parte do carnaval carioca de 1929 a 1931.

 
Compartilhar pelo Facebook Compartilhar pelo Twitter Compartilhar pelo Whatsapp
MAIS DA SÉRIE
texto
A singularidade do Cais do Valongo no mundo

A singularidade do Cais do Valongo no mundo

27/07/2017

Apenas um sítio arqueológico no Senegal apresenta semelhanças históricas e simbólicas com o cais negreiro carioca. 

Matrizes Negras do Rio

texto
Cais do Valongo é Patrimônio da Humanidade

Cais do Valongo é Patrimônio da Humanidade

19/07/2017

Sítio se encontra no mesmo patamar da cidade de Hiroxima e do campo de concentração de Auschwitz, como um alerta para as gerações futuras.

Matrizes Negras do Rio

texto
O samba é plural

O samba é plural

02/12/2015

Em 2 de dezembro se comemora o Dia Nacional do Samba, um ritmo musical dos mais ricos que existem: tem partido-alto, samba de terreiro, de breque ...

Matrizes Negras do Rio

texto
Baianas de acarajé no Rio de Janeiro

Baianas de acarajé no Rio de Janeiro

26/11/2015

Em 25 de novembro se comemora um dos mais antigos ofícios femininos do país, que há dez anos é também patrimônio tombado pelo Iphan.

Matrizes Negras do Rio

texto
Abolição e República: símbolos da liberdade negra

Abolição e República: símbolos da liberdade negra

13/05/2015

O movimento pela libertação dos escravos produziu alguns símbolos que se antagonizaram à República. Esse regime de governo não trouxe a igualdade esperada pelos negros.

Matrizes Negras do Rio

texto
Identidade carioca, capoeira e malandragem

Identidade carioca, capoeira e malandragem

24/03/2015

O longo processo histórico até a cultura afro-brasileira ser "oficialmente" incorporada à identidade do Rio e do país.

Matrizes Negras do Rio

texto
Tráfico de moçambicanos: o último suspiro do comércio negreiro

Tráfico de moçambicanos: o último suspiro do comércio negreiro

05/01/2015

Os cativos oriundos de Moçambique só chegaram ao Rio, em grande escala, no apagar das luzes da escravatura.

Matrizes Negras do Rio

texto
A influência dos nagôs na cultura carioca

A influência dos nagôs na cultura carioca

11/11/2014

O grande êxodo dos nagôs da Bahia para o Rio de Janeiro foi determinante na construção da identidade cultural da cidade.

Matrizes Negras do Rio

texto
Escravidão, diplomacia e leis

Escravidão, diplomacia e leis "para inglês ver"

22/10/2014

Nesta segunda matéria da série sobre as matrizes negras do Rio de Janeiro, conheça as artimanhas diplomáticas e jurídicas da coroa portuguesa para ludibriar os britânicos, que pressionavam pelo fim do tráfico negreiro e da escravatura no Brasil.

Matrizes Negras do Rio

texto
O matiz banto do Rio

O matiz banto do Rio

02/09/2014

O ensino das relações étnico-raciais é obrigatório há mais de dez anos, mas ainda sabemos muito pouco sobre os laços que o Rio construiu com a África ao longo do tempo. Nesta semana, a MultiRio dá início a uma série de matérias repletas de histórias – que a maioria ainda desconhece – sobre as matrizes negras da cidade.

Matrizes Negras do Rio

texto
A brasileira África dos escravos retornados

A brasileira África dos escravos retornados

29/07/2014

Para se distinguirem dos nativos, os libertos que retornaram à África no século XIX construíram uma brasilidade própria, cultivada até hoje pelos descendentes.

Matrizes Negras do Rio

egebey1453 multirio.txt