“Fake news: informação falsa e em alguns casos sensacionalista apresentada como um fato, publicada e disseminada na internet.” A definição é do Dicionário Collins, que elegeu o termo como a “palavra de 2017”. Apesar de o termo “falso” sugerir uma inverdade absoluta, há gradações, podendo se tratar de uma falsificação simples, um exagero, uma especulação, uma simples opinião ou uma distorção, sempre apresentada como uma matéria jornalística profissional.
A disseminação de notícias falsas é um fenômeno mundial que não apenas afeta o jornalismo, mas coloca em risco a democracia e a cidadania. Um estudo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), dos Estados Unidos, publicado neste ano, apontou que informações inverídicas se espalham mais rápido do que as verdadeiras – têm 70% mais chances de ser compartilhadas –, e que a difusão de conteúdo mentiroso se dá mais pela ação humana do que dos robôs (ou bots).
Dados da Pesquisa Brasileira de Mídia 2016 – Hábitos de consumo de mídia pela população brasileira, da Secretaria de Comunicação Social do governo federal, apontam que 49% dos brasileiros declararam usar a web para se informar (em primeiro ou segundo lugar), percentual abaixo da TV (89%), mas bem acima do rádio, dos jornais e das revistas.
Nesse cenário, mostra-se fundamental desenvolver o pensamento crítico dos alunos com relação ao que leem, compartilham e produzem na internet. Essa abordagem está prevista na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e é, também, defendida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Educação, antídoto contra fake news
A BNCC prevê, como uma das competências específicas de Linguagens para o Ensino Fundamental, a compreensão e o uso de tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares). No documento, o estudo das fake news, especificamente, consta no componente curricular de Língua Portuguesa dos anos finais (6º ao 9º).
“A questão da confiabilidade da informação, da proliferação de fake news, da manipulação de fatos e opiniões tem destaque, e muitas das habilidades se relacionam com a comparação e análise de notícias em diferentes fontes e mídias, com análise de sites e serviços checadores de notícias e com o exercício da curadoria, estando previsto o uso de ferramentas digitais de curadoria.”
Trata-se da ideia de alfabetização midiática, uma conceituação ampliada de alfabetização, que se expande para refletir mudanças na tecnologia, na cultura e na sociedade, como afirma a educadora norte-americana Renee Hobbs – que criou, no início dos anos 1990, o primeiro curso de letramento midiático e informacional (media literacy, em inglês) na Universidade de Harvard e escreveu livros que se tornaram referência no tema – em entrevista ao Correio Braziliense, publicada em 11 de março deste ano.
“Em tempos antigos, uma pessoa era alfabetizada se sabia falar e ouvir; depois, isso passou a envolver ler e escrever; e, agora, na era da mídia digital, pensamos em alfabetização midiática como ser capaz de analisar criticamente e também ser capaz de criar conteúdos com ferramentas digitais. Não é preciso ter internet disponível para isso. Eu vim ao Brasil 20 anos atrás a convite de representantes de jornais impressos e, naquela época, as pessoas estavam aprendendo a fazer alfabetização digital e midiática com jornais. Esse conceito deve refletir o tipo de mídia que está disponível em cada comunidade”, afirmou a educadora ao jornal de Brasília.
Para Pollyana Ferrari, doutora em Comunicação Social e professora da pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a educação midiática pode se dar nas escolas a partir do Ensino Fundamental, de maneira interdisciplinar. “Isso já é realidade em outros países, como Portugal, que tem letramento midiático na grade curricular desde os anos 1990. Só com entendimento do contexto e estímulo cognitivo, para diferenciar o falso do verdadeiro, podemos criar nas crianças o desejo de checar. Checar fatos como hábito. Isso faz toda a diferença”, afirma Pollyana, que é autora de seis livros sobre comunicação digital.
A Unesco também aborda o tema na publicação Alfabetização midiática e informacional: currículo para formação de professores, dispondo que a produção de conteúdo e o uso das mídias devem promover uma pedagogia focada nos alunos, capaz de estimular a investigação e o pensamento reflexivo por parte dos estudantes.
“A produção de conteúdo midiático proporciona uma via para que os estudantes familiarizem-se com a aprendizagem pela prática, por meio da produção de textos e imagens em um ambiente participativo. Os professores devem desempenhar um papel ativo nesse processo, para que os alunos possam desenvolver competências para a aprendizagem participativa. [...] À medida que os professores desenvolvem competências e tornam-se confiantes para produzir e usar mídias e informações para práticas instrutivas, eles passam a ser líderes na promoção da alfabetização midiática e informacional dentro do currículo escolar”, diz o documento.
Sugestões para o trabalho com fake news
Especialistas em Infoeducação e autoras do livro Como não ser enganado pelas fake news, com lançamento previsto para dezembro deste ano, a jornalista Januária Cristina Alves e a educadora Flávia Aidar acreditam que o começo do trabalho com notícias falsas pode se dar com crianças menores por meio da literatura infantil.
“Desde que se começa a trabalhar a narrativa, a contação de histórias, a criança aprende a delimitar o real e o imaginário, a fazer essa transição. Ela aprende a estrutura narrativa, que é também a estrutura da notícia. Muito cedo, começa a se familiarizar com os diversos gêneros. E aprende a diferenciar algo que aconteceu de algo que não aconteceu”, diz Januária Alves, que é mestre em Comunicação Social com tese sobre jornalismo infantil.
“Sei de casos em que professoras do 4º ano trabalharam a narrativa de contos e histórias pelo ponto de vista de diversos personagens. Por exemplo, em Chapeuzinho Vermelho, contaram a história sob o ponto de vista do lobo, da vovó etc. E é isso: trabalhar as várias visões sobre um fato e as possibilidades de narrativa”, exemplificou Flávia Aidar, professora de História e autora de materiais didáticos e paradidáticos.
Para o jornalista Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação Social da Universidade de São Paulo (USP), as escolas podem propor lições de ceticismo. “É importante duvidar, até mesmo para a ciência. A dúvida gera conhecimento e leva o aluno a questionar discursos. A desinformação torna os públicos mais vulneráveis”, afirmou Bucci, durante o evento internacional Educação 360, no Rio de Janeiro.
No Brasil e no mundo, além do trabalho de checagem de notícias feito por diversas agências (Agência Lupa, Agência Pública, Boatos.org etc.), muitos projetos foram e vêm sendo desenvolvidos a fim de reunir informações para professores e alunos, além de apresentar propostas de atividades a serem realizadas em sala de aula. Conheça algumas iniciativas:
1) Jogo Caô Digital
O jogo no estilo plataforma criado pela MultiRio traz dicas para identificar boatos e notícias falsas nas mídias sociais. O usuário escolhe um personagem para entrar na rede de computadores e apurar um boato que se espalhou por uma escola. Então, deve encontrar e libertar avatares, na primeira fase do jogo, para conseguir informações sobre como combater as fake news. Ao longo das outras quatro fases, o usuário tem acesso a novas dicas. A versão demo do Caô Digital está disponível e as próximas fases serão lançadas em novembro.
O jogo foi concebido e desenvolvido a partir de atividades e oficinas sobre notícias falsas, com alunos (a partir do 6º ano) e professores das escolas municipais Grécia (4ª CRE) e Joaquim Abílio Borges (2ª CRE), que também testaram e deram sugestões.
A proposta da MultiRio é, a partir do debate sobre fake news, estimular que os estudantes tenham uma visão crítica do mundo e compromisso com a verdade.
Nesse sentido, está sendo feito um mapeamento, junto com as Coordenadorias Regionais de Educação (CREs), de escolas interessadas em participar de oficinas e atividades sobre o tema, promovidas pela MultiRio. Professores interessados também podem entrar em contato diretamente com a Assessoria de Articulação Pedagógica da Empresa.
2) Atividades do projeto MídiaMakers
O jogo Não Foi Cabral!, que propõe a criação de um percurso de checagem de textos encontrados em livros didáticos, é um dos materiais disponibilizados pelo projeto MídiaMakers, em parceria com as Chicas Poderosas e Google Innovators.
Atuando em prol do letramento midiático de crianças e jovens, a iniciativa inclui, ainda, infográficos interativos, atividades, planos de aulas e check-lists. Os materiais foram criados durante o Mediathon Educação para a Informação, realizado em São Paulo em abril deste ano, e estão disponíveis no site.
3) Vídeos da série Como sobreviver nas redes sociais
A série produzida pela DW Brasil, empresa de comunicação da Alemanha, é composta por oito vídeos explicativos de aproximadamente dois minutos cada, que falam sobre como reconhecer fotos e vídeos falsos, como assuntos do momento são manipulados, como não cair em notícias falsas, entre outros.
A playlist está disponível no canal da DW Brasil no YouTube.
4) Jogo RPG Cheque Isso!
Projetado para alunos a partir de 15 anos, trata-se de um plano de aula, em formato de jogo de RPG, criado com o objetivo de ensinar alunos a checar fatos. A iniciativa é do Instituto Poynter, entidade norte-americana sem fins lucrativos, com versão em português produzida pela Agência Pública e pelo Aos Fatos.
O material está dividido em três partes: o Guia do Professor, com instruções para a aplicação em sala de aula e as regras do jogo; o Guia de Checagem de Fatos, compilação de ferramentas e dicas que deve ser distribuída para os alunos; e as cartas do jogo Cheque Isso!, no qual os alunos atuam como investigadores, checando peças noticiosas.
As atividades do plano podem ser baixadas aqui, mediante cadastro no site.