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Debret, o primeiro cronista da vida carioca
23 Outubro 2015 | Por Sandra Machado
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bananeiraConta a História que Dom João e um séquito de 15 mil pessoas desembarcaram na colônia brasileira para fugir das Guerras Napoleônicas (1803-1815), que envolveram toda a Europa. Por ironia do destino, com o fim do confronto e o restabelecimento das relações entre Portugal e França, um artista especializado em pintar Napoleão Bonaparte viria a realizar o mais completo retrato das aceleradas mudanças no Rio de Janeiro de então: Jean-Baptiste Debret. A antiga cidade colonial havia se tornado o destino de diversas missões artísticas, diplomáticas e científicas, mas foi justamente aquele integrante da Missão Francesa quem se tornou o retratista oficial da corte portuguesa no Rio. O resultado de 15 anos de permanência, que incluiu viagens também a São Paulo e à Região Sul, compõe um livro publicado por Debret em três volumes: Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Ainda graças ao artista, foi fundada a Academia Imperial de Belas Artes (1826), que promoveu a realização da primeira exposição de arte no país (1829).

Itinerário sem rascunho

Nascido em Paris no ano de 1768, Debret foi aluno de Jacques-Louis David, seu primo e principal nome do estilo neoclássico francês, na Academia de Belas Artes da mesma cidade. Durante a Revolução Francesa, cursava Engenharia na Escola Politécnica, onde se distinguiu na cadeira de Desenho. Por volta de 1806, passou a trabalhar como pintor na corte de Napoleão e, com a queda do imperador, em 1815, aceitou o convite para integrar um grupo de intelectuais, liderado por Joachim Lebreton, incumbido não apenas de produzir arte, mas também de formar artistas no outro lado do Atlântico.

Sua segunda opção, de acordo com historiadores, seria rumar para a Rússia, onde o czar Alexandre I também andava à procura de um pintor de história de alto quilate. Mas era no Rio de Janeiro que antigos bonapartistas, como o general-conde de Hogendorp, cultivavam cafezais, na Chácara das Águas Férreas, localizada nas redondezas do atual Alto da Boa Vista. Debret atravessava uma crise pessoal, pois acabara de perder seu único filho, morto aos 19 anos, e estava separado da mulher. Embarcou no veleiro norte-americano Calpe, no porto de Le Havre, em 22 de janeiro de 1816, e aportou no Rio no dia 26 de março de 1816, em meio às homenagens pelo falecimento de Dona Maria I na semana anterior, que incluíam tiros disparados de canhões postados nas fortalezas e nos navios de guerra, a cada dez minutos.

Destaque como professor

Assim que desembarcou, logo realizou seu primeiro trabalho: o Retrato de D. João VI, em tamanho natural e trajes majestáticos. A este se seguiram outros, de diversos integrantes da família real. Mais tarde, foi nomeado cenógrafo do Real Teatro de São João (situado no mesmo local onde hoje fica o Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes) e, em parceria com Auguste Taunay e Grandjean de Montigny, cuidou da ornamentação da cidade para a aclamação de Dom João VI como rei de Portugal, Brasil e Algarves, iniciada em 6 de fevereiro de 1818 e que se estendeu por três noites e três dias.

Ao longo dos primeiros anos no Rio de Janeiro, Debret se dividiu entre o registro dos acontecimentos ilustres da coroa e seu interesse como documentarista das relações na estratificada sociedade brasileira. Mas o principal objetivo da Missão Artística Francesa – promover o ensino da arte no país pela interação dos brasileiros com escritores, arquitetos, escultores, gravadores e pintores europeus – só iria se incorporar ao seu cotidiano a partir de 1826, quando se tornou professor de Pintura Histórica na Academia Imperial de Belas Artes (Aiba), onde atuou até retornar a Paris. A partir do advento da República, a academia passou a se chamar Escola Nacional de Belas Artes, até 1931, ano em que foi extinta enquanto instituição autônoma, transformando-se em um departamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A Aiba foi o ponto de partida para que Debret organizasse, em 1829, a primeira mostra coletiva de arte no Brasil. A Exposição da Classe de Pintura de História da Academia exibia trabalhos próprios, mas também de Montigny e dos alunos de ambos, e deu origem às chamadas Exposições Gerais, que, naquela época, já ofereciam premiação oficial. O sucesso do evento – um público visitante superior a duas mil pessoas – fez com que a coroa portuguesa concedesse a Debret uma distinção reservada a poucos: a comenda da Ordem de Cristo. O maior reconhecimento, no entanto, talvez tenha sido outro: a autorização para permanecer no país por mais tempo do que qualquer outro artista estrangeiro. A previsão inicial de seis anos se estendeu a 15, e o pintor só voltou a Paris quando, em 1831, após a abdicação de Dom Pedro I, solicitou uma licença ao Conselho da Regência, alegando problemas de saúde. Àquela altura da vida, seu maior desejo era editar tudo o que havia produzido – como realmente fez, nos três volumes publicados em 1834, 1835 e 1839, respectivamente.

Maior legado autoral

Diferentemente dos naturalistas que o antecederam, Debret tinha em mente apresentar um panorama que superasse a visão do Brasil como um país exótico e reconhecido, apenas, sob o ponto de vista da história natural. No primeiro volume de Viagem Pitoresca e Histórica do Brasil, estão retratados os indígenas e a formação vegetal; no segundo, os escravos negros e as atividades econômicas dos artesãos, dos pequenos comerciantes urbanos e dos agricultores; no último, as instituições políticas, religiosas e suas manifestações em torno de festas e tradições populares. O caráter de fonte documental do livro está no fato de que Debret teve a preocupação de produzir, também por escrito, uma descrição o mais impessoal possível. “No intuito de tratar de uma maneira completa um assunto tão novo, acrescentei diante de cada prancha litografada uma folha de texto explicativo, a fim de que pena e pincel suprissem reciprocamente a sua insuficiência mútua”, escreveu.

Tanto cuidado tem explicação. A formação neoclássica de Debret fazia com que sua inclinação ideológica pendesse para os valores republicanos da igualdade, da liberdade e da fraternidade. E isso era tudo o que não existia na sociedade brasileira no início do século XIX. No entanto, a sensibilidade do artista lhe dava esperança, como confirma a apresentação feita por ele na abertura de sua mais importante obra, que chamava de coleção: “Animados todos por um zelo idêntico e com o entusiasmo dos sábios viajantes que já não temem mais, hoje em dia, enfrentar os azares de uma longa e ainda, muitas vezes, perigosa navegação, deixamos a França, nossa pátria comum, para ir estudar uma natureza inédita e imprimir, nesse mundo novo, as marcas profundas e úteis, espero-o, da presença de artistas franceses”.

No entanto, o livro de Debret permaneceu na obscuridade na França, e só foi redescoberto nas décadas iniciais do século XX. Entre 1914 e 1945, uma das primeiras publicações ilustradas da imprensa brasileira – a Revista da Semana – publicou 250 imagens do artista francês, com destaque para o chamado Álbum Debret, editado de 1935 a 1937. Em 1938, o colecionador Raymundo Ottoni de Castro Maya adquiriu o acervo completo da Casa Brasileira de Paris. O conjunto de obras foi exibido parcialmente ao público em uma exposição realizada no Museu Nacional de Belas Artes dois anos mais tarde, quando aconteceu, finalmente, o lançamento do livro-coleção pela Livraria Martins.

Depositário da coleção de Castro Maya, o Museu da Chácara do Céu reúne atualmente 451 aquarelas, 58 desenhos e 29 gravuras de Debret na Coleção Brasiliana, que concentra quatro séculos de produções de estrangeiros sobre o Brasil. Outros endereços, como a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes e o Instituto Moreira Salles, completam a oferta de trabalhos do artista no Rio de Janeiro.

Fontes:

Enciclopédia Itaú Cultural, O Estado de S.Paulo.

GRIECO, Alfredo. Atualizando Debret. Revista Alceu, v. I, n. 1, jul./dez. 2000, p. 75-90.

LIMA, Valéria. Uma viagem com Debret. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

SIQUEIRA, Vera Beatriz. Aquarelas do Brasil: a obra de Jean-Baptiste Debret. Revista 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 1, jan. 2007.

TREVISAN, Anderson Ricardo. Arte, memória e sociedade: Jean-Baptiste Debret e sua (re)descoberta na primeira metade do século XX no Brasil. Revista Resgate, v. XX, n. 23, jan./jun. 2012, p. 18-27.

 
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