Quem entra hoje no Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, não imagina que a residência da família real portuguesa pertencia, até 1808, a um libanês. Antun Elias Lubbos, ou Elias Antônio Lopes, forma abrasileirada de seu nome, era um comerciante e proprietário de terras que cedeu, de bom grado, o lugar onde morava, porque não havia nenhum outro à altura da corte no Rio de Janeiro. D. Pedro II – que, aliás, nasceu ali – fez uma visita oficial ao Líbano em 1876, o que gerou um aumento significativo do número de imigrantes sírio-libaneses cristãos, em fuga da opressão do domínio turco-otomano, nas décadas seguintes. Anualmente, em 22 de novembro se comemora o dia da comunidade libanesa no Brasil, já que o Líbano se tornou independente nesta data (em 1943), e o Brasil é o país que abriga o maior número de libaneses e seus descendentes no mundo – aproximadamente 8 milhões de pessoas, com destaque de atuação no comércio, na indústria, na construção civil e até na política.
Milhares de estrangeiros chegavam ao Brasil em busca do sonho americano. Segundo Ana Maria Mauad, no livro Histórias de Imigrantes e de Imigração no Rio de Janeiro, a estimativa é de que, entre 1890 e 1929, tenham entrado no país 3.523.591 pessoas. Desse total, 73.690 eram sírio-libaneses, que tinham predileção por se instalar, com suas vendas, perto de fazendas ou de núcleos de imigração. Seu comércio se caracterizava pela variedade de produtos, conseguidos em consignação dos compatriotas, e pelo crédito baseado na palavra empenhada. Tanto o Líbano quanto a Síria permaneceram ocupados pelo Império Otomano até 1920. E como eram as autoridades turcas que forneciam passaportes, no desembarque, sírios e libaneses começaram a ser chamados genericamente de turcos.
“Um dos marcos consensuais da presença árabe no Rio de Janeiro é o nascimento do gramático Manuel Said Ali, em 1861, de pais já estabelecidos em Petrópolis”, lembra Mohammed ElHajji, professor da Escola de Comunicação da UFRJ e coordenador de O Estrangeiro, plataforma que integra atividades de pesquisa e de extensão sobre imigrantes e refugiados no Brasil. Segundo o professor, os africanos malês (negros escravos muçulmanos que sabiam ler e escrever em árabe) injetaram toda uma cosmogonia no universo simbólico afro-brasileiro. “É bastante conhecido, a este propósito, o relato do conde de Gobineau sobre a venda mensal de quase cem exemplares, em língua árabe do alcorão, no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, apesar de seu preço exorbitante.”
O auge do movimento migratório de sírios e libaneses para o país ficou entre as décadas de 1920 e 1930, devido, principalmente, às ocupações inglesa e francesa no Oriente Médio e às consequências da Primeira Guerra Mundial na região. Atraídos para a Amazônia durante o ciclo da borracha, se dirigiam também para São Paulo e Minas Gerais. Com a prosperidade, fundaram hospitais, centros culturais e clubes. Um dos mais conhecidos, no Rio de Janeiro, é o Clube Monte Líbano, fundado em 12 de setembro de 1946.
A contribuição sírio-libanesa também se deu no elo cultural mais forte entre os brasileiros, que é a língua pátria. Em especial por meio das palavras que se iniciam com “AL”, como alicate, almofada e alface, mas também em outras, muito comuns, como laranja e limão. “A língua portuguesa, particularmente abundante em construções e vocabulário árabes, é altamente esclarecedora quanto à importância da estrutura desta cultura nas formulações estéticas e subjetivas da sociedade brasileira”, afirma o professor ElHajji, lembrando que, muito antes da imigração sírio-libanesa, durante quase oito séculos a Península Ibérica esteve ocupada por árabes. “Várias fontes históricas apontam para uma presença efetiva de elementos árabes e mouriscos até nas caravelas.”
Muitos dos imigrantes que chegaram ao Brasil adotavam o ofício de mascates, mas quando alcançavam uma relativa prosperidade, abriam suas próprias lojas. Havia, no entanto, entre eles, profissionais formados na Universidade Americana de Beirute. No Rio de Janeiro, os recém-chegados se fixaram inicialmente na região da Rua da Alfândega, no centro da cidade, conhecida na atualidade como Saara – Sociedade de Amigos e Adjacências da Rua da Alfândega. “Eles se estabeleceram no ponto imediatamente sucessivo ao lugar de desembarque – o ponto geográfico mais próximo de sua terra de origem.”
Atualmente, não tem carioca que não conheça um curso de dança do ventre ou que não se delicie com a culinária árabe. Faz tempo que quibes e esfirras foram incorporados ao rol dos salgadinhos que não podem faltar numa boa festa. A alegria carioca tem muito da influência do grupo étnico árabe, sabidamente festeiro, e um ranking, em especial, contribui para confirmar essa hipótese, já que o Rio de Janeiro é a segunda cidade do Brasil em número de sírio-libaneses e seus descendentes. “Toda a história da imigração árabe para o Brasil é constituída de iniciativas e aventuras pessoais ou familiares, e não pela imigração de massa organizada, planejada e subsidiada”, ressalta o professor. “A Saara é uma expressão de resistência por parte de um grupo minoritário, que não era desejado nem previsto nos planos da classe dominante.”
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