Com seus bares, restaurantes e casas noturnas, a Avenida Mem de Sá é a principal artéria que pulsa no coração do mais boêmio bairro do Rio, a Lapa, e de onde nascem e se cruzam outras ruas, como a do Lavradio, que viraram referência na noite carioca. A avenida, inaugurada em 1906, foi batizada com o nome do governador-geral que participou ativamente da expulsão dos franceses e da fundação da cidade. A abertura da via teve como objetivo a melhoria do fluxo de transporte entre as regiões Central e Norte da cidade, mas não demorou muito – cerca de uma década – para começar a consolidar sua vocação notívaga, com seus cabarés, pensões personagens ligados à malandragem.
A Mem de Sá passa, na verdade, por dois bairros. Deságua na Rua Frei Caneca, no Centro, mas começa no Largo da Lapa, logo após a Sala Cecília Meirelles, na altura da Travessa do Mosqueira, onde fica o Cosmopolita. É o restaurante que eternizou nos cardápios cariocas o filé a Oswaldo Aranha, assim batizado em homenagem ao diplomata gaúcho, um assíduo frequentador que sempre pedia ao cozinheiro para fazer filé alto com alho frito, arroz, farofa de ovo e batata portuguesa, um item até então indisponível no menu. Aliás, uma das marcas registradas da gastronomia da avenida são os pratos que resistem há várias décadas – como o cabrito com brócolis, a canja de galinha, o chucrute –, muito embora os bares abertos mais recentemente invistam na releitura de clássicos da culinária, como o bolinho de feijoada.
Até assumir as feições atuais, o espaço ocupado pela via que leva o nome do terceiro governador-geral do Brasil passou por muitas transformações em sua paisagem natural. Nos séculos XVII e XVIII, a Lapa era uma área repleta de pântanos e alagadiços, ocupada por esparsas chácaras que ficavam entre as lagoas do Desterro, do Boqueirão e da Sentinela, que ganhou esse nome por causa de uma guarita de vigilância ali instalada após a invasão francesa de 1710. Poucas décadas depois, a chácara do guarda-mor das Minas Gerais, Pedro Dias, já ocupava praticamente toda a extensão da área onde fica, hoje, a Avenida Mem de Sá: começava no sopé do Morro de Santo Antônio e terminava na Lagoa da Sentinela.
Veja onde ficavam as lagoas aterradas:
Lagoa | Localização |
Lagoa do Desterro | Atrás dos Arcos, no sopé do Morro de Santo Antônio |
Lagoa do Boqueirão | Largo da Lapa/Passeio Público |
Lagoa da Sentinela | Atrás do Morro de Pedro Dias (ou Senado), na confluência da Rua Frei Caneca com a Mem de Sá |
Ocupação urbana
A história da ocupação urbana da Avenida Mem de Sá confunde-se com a da Lapa. Tudo se inicia em 1751, quando foi fundada a Igreja de Nossa Senhora da Lapa do Desterro (vem daí o nome do bairro), à margem da Lagoa do Boqueirão. Suas festas e quermesses passaram a atrair várias pessoas e alguns armazéns se instalaram no entorno. O número de casas comerciais da região aumentou significativamente com a transferência da capital do Brasil, de Salvador para o Rio, em 1763, pois vários comerciantes portugueses se fixaram por ali.
Com a morte de Pedro Dias e o consequente fracionamento de suas terras em lotes menores, a ocupação foi se estendendo de forma paulatina. O adensamento vertiginoso da área só ocorreu mesmo com a vinda da família real, em 1808, quando a Lapa e o Caminho do Catete disputavam a preferência de moradia dos aristocratas que chegaram ao Rio. Em 1810, os padres carmelitas também passaram a promover a festa do Divino Espírito Santo, com barraquinhas armadas no Largo da Lapa. O evento durava cinco semanas, atraía muita gente e acabou se transformando no mais importante festejo popular da época, na cidade.
Em 1838, a região contava com 6.500 habitantes e, em 1888, esse número triplicara. A essa altura, quem tinha mais posses já havia se mudado para os emergentes bairros do Flamengo, de Botafogo e Laranjeiras, deixando a Lapa para pequenos negociantes – como vidraceiros, açougueiros e barbeiros – e camadas mais pobres da população, algumas vezes instaladas nos decadentes casarões aristocráticos transformados em casas de cômodos e cortiços. No final do século XIX, os botequins que ficavam abertos durante a noite começaram a fazer a fama da Lapa como lugar de boemia.
Uma nova avenida pede passagem
A abertura da Mem de Sá ocorreu no início do século XX, no contexto das grandes reformas urbanas promovidas durante a gestão do então prefeito Pereira Passos (1902-1906). Desde os tempos coloniais, a Estrada de Mata-Cavalos (atual Rua do Riachuelo) era a principal via de ligação do Centro com os caminhos que levavam para o Engenho Velho (Tijuca) e as diversos cercanias ao Norte. Com a chegada dos trens em meados do século XIX e a expansão da cidade para os subúrbios, novas necessidades de fluxo se impuseram na vida do Rio.
Para construir a nova avenida, Pereira Passos usou os métodos do bota-abaixo, com intimações que davam pouquíssimos dias para as famílias abandonarem seus lares.
Casas, casebres e cortiços foram demolidos em poucas semanas, junto com o arrasamento do Morro do Senado (como passou a ser chamado o Morro de Pedro Dias, após a sua morte em 1780). Os destroços da velha colina, cujo cume ficava na altura da atual Praça da Cruz Vermelha (ver vídeo abaixo), serviram para aterrar o que ainda restava de alagadiços na Lapa, além de toda a região portuária, que, na época, era entrecortada por várias pequenas enseadas.
Da série Esse Lugar Tem História
A Mem de Sá foi inaugurada em 1906 junto com o primeiro lampadário ornamental do Rio de Janeiro. Fixado no Largo da Lapa, era um ícone da modernidade na cidade, onde o serviço de luz elétrica nas ruas havia chegado em 1904. Pela avenida também passou a circular outro grande símbolo do progresso: o bonde movido à eletricidade.
A boemia e seus personagens
A chegada da energia elétrica impulsionou o movimento noturno da cidade. O tipo de boemia que se consolidou na Lapa relaciona-se com as reformas de Pereira Passos, que expulsou as camadas mais baixas da população do eixo da Avenida Central (atual Rio Branco), inaugurada pouco antes da Mem de Sá e transformada na grande vitrine da capital da jovem República. A consequência dessa política urbanística foi a criação de um cinturão de pobreza em torno do centro da cidade.
Os teatros, cinemas, cafés, clubes e restaurantes das praças Floriano (Cinelândia) e Tiradentes (que logo entraria em decadência) eram frequentados pelas camadas mais altas e médias: funcionários públicos, empresários, comerciantes, fazendeiros... Mas uma outra face do lazer noturno – cabarés, botequins, gafieiras e inferninhos – passou a florescer na Lapa, Praça Onze e região portuária.
Assíduo frequentador do restaurante A Nova Capela e de vários botequins da Mem de Sá, Madame Satã, o mais famoso malandro da Lapa, falou sobre alguns habituées da vida noturna da avenida, com quem costumava beber e conversar nos idos dos anos 1920 e 1930: os bambas do samba Noel Rosa, Ismael Silva e Nelson Cavaquinho, os cantores Francisco Alves e Araci de Almeida, o chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas, Gregório Fortunato, o poeta Manuel Bandeira, o jornalista, deputado federal e governador da Guanabara, Carlos Lacerda, e muitos outros.
Repressão e revitalização
Não faltou resistência, mas a efervescência da vida noturna da Lapa começou a ser suprimida com as medidas de moralização da Era Vargas. Foi, aliás, numa das rondas da polícia de costumes que Madame Satã, exímio capoeirista, ganhou seu nome de guerra. Poucas semanas depois de ter vencido – com uma fantasia de morcego repleta de lantejoulas – um concurso promovido pelo bloco carnavalesco Caçadores de Veado, foi preso junto com outros homossexuais, nas proximidades do Largo da Lapa. Ao ser indagado sobre qual era seu apelido e dizer que não tinha, o policial perguntou se não não era o vencedor do “concurso das bichas” (como se dizia na época), vestido de Madame Satã. É que o policial associou a fantasia de morcego ao figurino da atriz que protagonizava um filme americano homônimo, que fazia sucesso no Rio, na época. E assim, nasceu o codinome mais célebre do bairro.
Com a Lei das Contravenções Penais de 1941, voltada para a manutenção da ordem político-social e dos costumes, a repressão policial aumentou e a Mem de Sá e toda a Lapa testemunharam o fechamento de seus cabarés, pensões de quartos de hora, inferninhos... A decadência tornou-se inevitável. A boemia tomou outro rumo, o de Copacabana, ganhando novos ares de modernidade.
Mas a Lapa e seus malandros já estavam eternizados na memória e identidade dos cariocas. Com o projeto de revitalização, iniciado no final do século passado, voltou a ser – como diz a música Eu Vou pra Lapa, de Serginho Meriti e Claudinho Guimarães – “a dama da noite... reduto de bambas, poetas, boêmios...”, mas, agora, com traços do século XXI, pois ao mesmo tempo que “é a velha Lapa dos Arcos, do Centro, do Circo, do nobre Capela... é a nova Lapa das tribos dos raps, dos bits e do tamborzão...”.
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