Surgida a partir de uma sucessão de pequenos e contínuos aterros sobre a Baía de Guanabara, ocorridos entre a primeira metade do século XVII e o início do XX, a Praça Quinze de Novembro é, hoje, associada à Estação das Barcas de forma quase visceral, embora tenha muitos outros usos. Além de ter sido o cenário da Bolsa de Valores e um dos principais pontos turísticos e culturais do Centro – pela presença do Paço Imperial, do Arco do Teles e do Chafariz de Mestre Valentim –, é um dos lugares prediletos dos skatistas, nos fins de semana, e onde os amantes de objetos antigos podem fazer seus garimpos, aos sábados, na Feira de Antiguidades.
Muitos outros usos teve a Praça Quinze em seus cerca de 400 anos de existência. Talvez a recente construção do túnel subterrâneo e do caminho a pé que faz sua ligação com a Avenida Rodrigues Alves ajude o carioca a resgatar sua história de principal região portuária da cidade, posto que ocupou por quase 300 anos. Como tal, funcionou como porta de entrada e uma espécie de cartão-postal do Rio de Janeiro colonial e imperial.
Primórdios
Era na região entre os morros do Castelo e de São Bento que aportavam e partiam as embarcações que iam e vinham do Reino, da África e do Rio da Prata, onde os traficantes negreiros da cidade costumavam vender boa parte dos escravos, na época da União Ibérica. Os navios ficavam fundeados no meio da Baía de Guanabara e as mercadorias e os tripulantes chegavam à terra firme por meio de pequenos barcos.
No meio do caminho entre um morro e outro, numa área aterrada, havia o Terreiro da Polé, como o povão dos anos 1600 chamava o logradouro que, alguns séculos e aterros depois, se transformaria na Praça Quinze. O nome fazia referência ao pelourinho que existia ali. Oficialmente, contudo, denominava-se Rocio (ou Terreiro, ou Terreirão, ou Largo) do Carmo, por ficar em frente à Igreja e ao Convento de Nossa Senhora do Carmo, ambos localizados na Rua Direita (atual Primeiro de Março), a principal via da cidade até o fim do século XIX.
Nas imediações do terreirão, espalhavam-se canoas e pequenas embarcações pesqueiras. De frente para o mar, à esquerda, até a altura da Alfândega, ficava a Praia do Peixe, onde se desenvolveu um comércio de pescados e de produtos hortifrutigranjeiros vindos de barco, de vários lugares do fundo da baía. Era uma grande e permanente feira livre, o maior mercado de abastecimento da cidade, realidade que perdurou até meados do século XX, embora tenha ganhado outros formatos e lugares – todos no entorno da Praça Quinze – no decorrer dos tempos.
Da série Esse lugar tem história
O Mercado do Peixe era repleto de ambulantes, que aproveitavam o movimento portuário para oferecer seus produtos. Perambulavam entre o Terreirão do Carmo – no qual os barcos com pessoas de mais fino trato costumavam aportar – e o Cais dos Mineiros, o mais importante da cidade durante o século XVIII. Ficava na altura da atual Rua da Candelária e ganhou esse nome por ser o local onde o ouro das Minas Gerais era embarcado para Portugal. Por ele também passava a maior parte das mercadorias exportadas e importadas, inclusive os escravos.
Mudança de status
O Rocio do Carmo sempre foi uma das áreas mais valorizadas da cidade colonial. No século XVIII, além da presença dos padres carmelitas – cujo trabalho sempre foi voltado ao atendimento da população mais abastada –, abrigava a Casa dos Governadores, que passou a se chamar Paço dos Vice-Reis em 1763, quando o Rio de Janeiro se tornou capital da colônia.
Elevado ao status de Largo do Paço – nome que só mudou com a Proclamação da República –, fez com que o vice-rei Luís de Vasconcelos promovesse melhorias no antigo terreirão e em seu entorno, a começar pelo Mercado do Peixe, que foi reordenado e ganhou bancas de alvenaria, entre outras benfeitorias. Em 1779, Luís de Vasconcelos também mandou construir um cais de pedra, aos moldes dos de Lisboa, com três escadas de acesso ao chafariz encomendado a Mestre Valentim. Em razão de aterros posteriores, esse chafariz se encontra, hoje, a mais de 100 metros da linha d’água da baía, mas, na época, sua construção teve o objetivo de facilitar o desembarque dos passageiros e a coleta de água para abastecimento dos navios.
No rastro da valorização do Largo, a família Barreto Teles de Menezes mandou erguer, do lado oposto ao Paço, um suntuoso prédio com lojas, casas e salas para alugar. Porém, em 1790, a construção sofreu um incêndio de grandes proporções. A Câmara, que havia se transferido para um dos andares, viu a maior parte de sua documentação virar cinzas, fato ressentido até hoje por dificultar a reconstituição da história da cidade colonial.
Do incêndio restaram apenas escombros e o arco que havia no meio da construção, ligando o Largo do Paço a uma ruela que desaguava na Rua do Ouvidor. O prédio foi reconstruído não muito tempo depois, mas enquanto isso não aconteceu, o Arco do Teles – praticamente única parte edificada que restou do fogaréu – virou refúgio de ladrões, mendigos, arruaceiros... Entre estes, quem mais assombrava a população era Bárbara dos Prazeres, uma personagem real cujas histórias contadas transitam entre os fatos e a lenda. Ela fazia rituais de magia negra a fim de se manter jovem e, por isso, a população da época passou a relacioná-la com as feiticeiras. Há, inclusive, quem defenda que a expressão “a bruxa está solta” refere-se a ela, que sempre conseguia escapar antes de ser presa.
Monarquia e Cais Pharoux
É provável que o dia 7 de março de 1808 tenha sido o mais glamouroso da Praça Quinze, pois foi no Paço dos Vice-Reis que a família real se acomodou, junto com seu séquito, quando chegou ao Rio de Janeiro. Não demorou muito para o imóvel ser considerado inapropriado como residência real e o príncipe regente D. João e sua família se transferirem para a Quinta da Boa Vista. O Paço dos Vice-Reis, então elevado a Paço Real, passou a ser utilizado como sala de despachos e lugar onde aconteciam as festas de gala e as cerimônias oficiais, como a do beija-mão. D. Carlota Joaquina também manteve aposentos no Paço e os ocupava quase que de forma permanente.
Tais acontecimentos impregnaram o antigo Largo do Carmo com toques de realeza. Em seu livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Jean-Baptiste Debret, chegado ao Rio em 1816 junto com a Missão Artística Francesa, narra como os estabelecimentos comerciais foram, aos poucos, se enfeitando com “elegantes tabuletas bem pintadas e vitrinas com colunas de mármore, vindas de Paris”.
Também em 1816, aportou na cidade o belga Louis Adolph Pharoux, que, poucos anos depois, abriu um luxuoso hotel que fez história na cidade. Primeiro, estabeleceu-se na Praia do Peixe, nas proximidades da Rua do Ouvidor e, depois, transferiu-se para a esquina do Largo do Paço, onde começava a Praia de D. Manuel.
O Hotel Pharoux – e seu famoso restaurante– virou ponto de referência e acabou emprestando seu nome ao novo cais, construído a partir de mais um aterro. O mais antigo, erguido durante a gestão do vice-rei Luís de Vasconcelos, em pouco tempo se tornou inoperante por sua baixa profundidade.
A partir de 1835, barcos a vapor passaram a operar linhas regulares para Niterói e outros pontos da Baía de Guanabara. Com o movimento no Cais Pharoux, o Largo do Paço começou a ganhar nova fisionomia. As barcas e a circulação dos bondes na Rua Direita, a partir do final da década de 1850, foram emprestando ao lugar a imagem de movimento, barulho e circulação de populares.
Mercado e Perimetral
A Estação das Barcas que existe hoje foi construída entre 1904 e 1912, sobre mais uma área de aterro. Eram tempos de remodelação da cidade, que, desde a posse do prefeito Pereira Passos, em 1902, passava por grandes transformações. Nessa mesma época, do lado direito da estação, na Praia de D. Manuel, foi inaugurado o Mercado Municipal da Praça Quinze, uma bela edificação de ferro, em estilo art nouveau, importada da Europa.
As novas instalações tinham por objetivo substituir as atividades desenvolvidas no Mercado da Candelária, projetado pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny para abrigar o comércio da Praia do Peixe. Inaugurado em 1841, esse velho mercado não condizia com os novos padrões higienistas da jovem República. No livro O Rio de Janeiro do meu tempo, Luiz Edmundo não poupa adjetivos para falar da sujeira e do mau cheiro de suas instalações, embora também cite as baianas asseadíssimas a vender seus quitutes. Em Ruas do Rio, Brasil Gérson transcreve o depoimento de um viajante francês sobre o mercado: “Nas suas barracas, podiam-se comprar macacos e micos, lagartos e jacarés... mais além eram as quinquilharias e os tecidos... movia-se gente de todas as cores e de todas as caras... o canoeiro atropelava o plantador da roça, o carregador branco e de pés descalços, o negro vergado ao peso dos fardos...”.
Em dezembro de 1907, foi inaugurado o novo Mercado Municipal da Praça Quinze, com um perfil de comerciantes constituído predominantemente por imigrantes italianos, portugueses e espanhóis. Até 1962, quando foi demolido para abrir espaço ao Viaduto da Perimetral, funcionou como o principal posto de abastecimento da população em geral e de navios, hospitais, quartéis, restaurantes... Desse Mercado Municipal, resta apenas uma única torre, onde funciona o Restaurante Albamar.
A construção da Perimetral também pôs abaixo o prédio do antigo Hotel Pharoux e partiu a Praça Quinze em dois pedaços, tirando de um deles a vista para a baía. Mas com o projeto Rio-Cidade Olímpica e o desmonte do viaduto, a visão das águas da Guanabara, tão intrinsecamente vinculada à sua história, lhe foi restituída.
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