A praça do Rio de Janeiro que abriga o maior número de instituições públicas em seu endereço é a da República. Também conhecida como Campo de Santana, lá estão instalados o Tribunal de Contas do Estado, o Hospital Souza Aguiar, o Arquivo Nacional (ex-Casa da Moeda), a Faculdade de Direito da UFRJ (sede do Senado entre 1826 e 1925), o Museu do Corpo de Bombeiros, o Museu do Exército, a Casa Histórica de Deodoro, a Escola Técnica de Teatro Martins Pena... Isso sem levar em consideração que a Central do Brasil e o Palácio Duque de Caxias tinham endereço no Campo de Santana até a abertura da Avenida Presidente Vargas, cuja construção, na década de 1940, engoliu uma boa parte de sua área verde.
Todas essas instituições dão uma mostra da importância histórica do Campo de Santana e de sua posição estratégica na vida da cidade. As estações da Central do Brasil e do Metrô, junto com o Terminal Rodoviário Américo Fontenelle, funcionam como uma espécie de portal que interliga, por meio do transporte público, o centro da cidade às zonas Norte, Oeste e Sul e à Baixada Fluminense, tornando a Praça da República um dos lugares mais fundamentais para a mobilidade urbana do Rio de Janeiro.
O primeiro nome da região onde hoje fica o Campo de Santana foi Campo da Cidade e abrangia, até o início do século XVIII, toda a área compreendida entre o limite do centro urbano, na Rua da Vala (atual Uruguaiana), e o Mangal de São Diogo (Cidade Nova). Tratava-se, na verdade, de um grande areal desabitado, cheio de charcos entremeados por vegetação rasteira, típica de restinga, muitos cajueiros e pitangueiras. Esse areal era atravessado por uma estradinha que se dirigia à Fazenda dos Jesuítas (atuais bairros da Tijuca, de São Cristóvão, Vila Isabel, do Maracanã, Grajaú e Engenho Novo). A primitiva vereda era conhecida como Caminho de Capueruçu, por contornar a lagoa de mesmo nome (também chamada de Sentinela), nas proximidades da atual Rua Frei Caneca, altura da Riachuelo e Mem de Sá.
O lugar era desvalorizado. Como se dizia na época, apenas os “infames pela raça ou religião” – como judeus, degredados, negros etc... – moravam ou frequentavam a região. Os ciganos, por exemplo, deportados de Portugal por D. João V, fincaram suas barracas depois do Rocio Grande (atual Praça Tiradentes) em direção ao mangue. E, seguindo essa estratificação do espaço, logo no início do século XVIII, a Irmandade de São Domingos, composta por negros, conseguiu um lote de terras nessa área (atual Presidente Vargas, altura da Avenida Passos) para erguer uma igreja. E, como se tratava da construção mais distante depois da Rua da Vala, o Campo da Cidade começou a ser chamado de Campo de São Domingos.
Não muito tempo depois, em 1710, os devotos de Santa Ana, também negros, passaram a manter uma imagem da Mãe de Maria no mesmo templo. Como os dominicanos não aceitavam que quisessem mandar em sua casa, os desentendimentos logo começaram. Por isso, em 1735, a irmandade santanense deu início à construção de sua própria capela, no terreno onde hoje está erguida a Estação Central do Brasil. Desde então, a área ao redor passou a ser chamada de Campo de Santana.
Da série Esse Lugar Tem História
Tigres e dejetos
Ainda na primeira metade do século XVIII, o Rio de Janeiro se transformou no porto oficial de exportação de metais e pedras preciosas das Minas Gerais. Com isso, a cidade passou a crescer de forma mais acelerada, criando vetores de expansão, inclusive em direção aos campos de São Domingos e de Santana. Chácaras começaram a proliferar. Só que o crescimento populacional na região urbana também ampliou o uso do lugar como área de despejo de lixo e esgoto.
Em seu livro Memórias da cidade do Rio de Janeiro, o engenheiro e jornalista Vivaldo Coaracy relata que, por ser uma área ainda distante do centro urbano, o próprio poder público – no caso, a Câmara Municipal, que na época também tinha poderes executivos – ordenou a abertura, no Campo de Santana, de “grandes fossos ou valas”, onde os “tigres” (escravos responsáveis por carregar os dejetos) “despejavam os barris do asqueroso conteúdo”.
A situação fétida e insalubre do lugar só foi transformada na última década do século XVIII, quando o vice-rei D. José Luís de Castro, o segundo Conde de Resende, mandou sanear a região, o que incluía a drenagem e o aterramento dos charcos. Também foi feito o arruamento do entorno e o retalhamento das terras públicas em novas chácaras.
Essas medidas permitiram que o Campo de Santana se integrasse ao espaço urbano e que construções mais abastadas fossem erguidas em seu entorno, como as casas do cigano Rabelo (que enriqueceu traficando escravos) e do sargento-mor Anacleto Elias, cuja moradia, anos depois, se transformaria na residência do Conde dos Arcos, posteriormente comprada por D. Pedro I para abrigar a sede do Senado.
Com a chegada da família real ao Rio de Janeiro, o Campo de Santana ganhou mais benfeitorias. O príncipe-regente D. João mandou construir ali um chafariz, equipamento fundamental ao abastecimento de água da região e que ainda provia ganhos para os aguadeiros e as lavadeiras. Por ser um lugar considerado adequado às manobras militares, também foi escolhido para abrigar o Quartel do Regimento da Tropa (no terreno onde foi construído o Palácio Duque de Caxias).
Palco da monarquia
A praça hoje é da República, mas o fato é que foi um dos lugares onde a monarquia mais se fez popular entre seus súditos. Foi lá que uma multidão entusiasmada, embalada pelo repique dos sinos das igrejas, aclamou D. Pedro I como imperador do novo país. O local da aclamação não foi escolhido à toa, pois, desde as melhorias realizadas no final do século XVIII, havia se tornado cenário das festas mais populares da cidade, a começar pelas comemorações do Império do Divino Espírito Santo – promovidas pela Irmandade de Santana –, que, em algumas ocasiões, chegavam a durar três meses.
Foi no Campo de Santana que, em 1818, aconteceram as pomposas festividades de casamento de D. Pedro com D. Leopoldina e de aclamação de D. João como rei de Portugal, Brasil e Algarves. Para essa ocasião, foi construído um vistoso curro – estrutura onde ocorriam as touradas e as cavalhadas, a parte nobre dos festejos populares promovidos, tradicionalmente, pela realeza portuguesa. Em função disso, o Campo de Santana passou a ser chamado de Praça do Curro até 1822, quando foi desmontado e virou Campo da Aclamação.
Se lá a população comemorou a transformação do príncipe D. Pedro em primeiro imperador do novo país, foi no mesmo lugar que, em 1831, aconteceu uma rebelião contra ele, pouco antes de sua abdicação. E, em função disso, o nome do lugar foi mudado para Campo da Honra.
Em 1841, as comemorações populares de coroação de D. Pedro II foram marcadas para o Campo da Honra, que, por ordem do jovem imperador, voltou a se chamar da Aclamação. Segundo a arquiteta Rachel Sisson, o lugar, nessa época, já estava consolidado como um dos centros de poder do Brasil monárquico.
Trens e jardins
Com a chegada da família real ao Rio de Janeiro, a região havia ganhado novas benfeitorias, como o chafariz de abastecimento d’água e o aterro do Mangal de São Diogo, sobre o qual foi construído um novo caminho de acesso a São Cristóvão. Desde então, o Campo de Santana veio se transformando num ponto estratégico, de conexão entre a urbe e o Palácio da Quinta da Boa Vista.
Não foi à toa a escolha do lugar para abrigar a estação central da Estrada de Ferro D. Pedro II, inaugurada em 1858. A chamada Estação do Campo, atual Central do Brasil, foi erguida no lugar da Igreja de Santana (reconstruída na Rua das Flores, atual Rua de Santana).
Com o fim da Guerra do Paraguai, em 1870, grandes comemorações no Campo da Aclamação foram patrocinadas pela Coroa Brasileira. Nessa época, D. Pedro II havia indicado o paisagista francês Auguste Glaziou para a Diretoria de Parques e Jardins da Casa Imperial. Foi ele quem levou a cabo antigo projeto de embelezamento do Campo, construindo românticos jardins, cursos d’água, cascatas, pontes, grutas...
Em 1873, quando as obras mal haviam começado, o primeiro guia turístico da cidade incluiu o parque como uma das atrações do Rio de Janeiro.
Cabeças de Porco e República
Várias chácaras e residências de nobres, médicos e outros profissionais liberais, instaladas nas ruas ao redor do Campo de Santana, haviam se transformado em casas de cômodos e cabeças de porco na virada do século XIX para o XX. As vias mais afetadas por esse processo foram aquelas por detrás da Estação do Campo e do quartel-general, conectadas com a região portuária por meio de um túnel ferroviário e por vias que davam acesso aos bairros da Gamboa e Saúde.
Provavelmente pela proximidade com o quartel-general, muitos militares moravam na região, entre eles o Marechal Deodoro da Fonseca, cuja residência ficava no próprio Campo da Aclamação. Encontrava-se ele em casa, seriamente doente, na noite de 14 de novembro de 1889, quando alunos-alferes da Escola Militar e oficiais dos regimentos de artilharia e de cavalaria resolveram se rebelar contra o governo imperial.
No amanhecer do dia 15, os revoltosos se dirigiram para diante do quartel-general. Avisado da movimentação, Deodoro, que tinha grande ascendência sobre as tropas, se levantou e foi ao encontro dos rebelados. Como não houve resistência, a República já estava instaurada no final da tarde.
Pouco tempo depois, o Campo da Aclamação foi rebatizado de Praça da República. Apesar de tantas mudanças de nomes, desde que a igreja em louvor à Mãe da Virgem fora ali instalada, o lugar que viu o Império ser aclamado e a República proclamada nunca deixou de ser chamado de Campo de Santana pela população.
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