Com vista voltada para o icônico Pão de Açúcar, a Avenida Beira-Mar é uma das vias mais marcantes no processo de construção da identidade do Rio de Janeiro. Foi em sua orla que os cariocas deram início ao hábito de tomar banho de mar e de praticar esportes na praia, para depois exibir seus corpos bronzeados e torneados ao mundo. Também está ligada à gênese da cidade, pois foi nas proximidades do Hotel Glória que aconteceu a Batalha de Uruçumirim, em 20 de janeiro de 1567. A peleja feriu de morte Estácio de Sá e marcou a vitória dos portugueses sobre os tamoios e os franceses, dando partida, de forma irreversível, à apropriação do território no entorno da Baía de Guanabara pela Coroa lusitana.
Mais que isso: o próprio termo “carioca” – seja qual for a explicação para a sua origem – tem relação umbilical com o lugar onde foi construída a avenida. Uma versão diz que o nome adviria da aldeia indígena Kariók, que existia no sopé do Outeiro da Glória, até a vitória dos portugueses na Batalha de Uruçumirim. Já a hipótese mais divulgada reza que a palavra estaria relacionada à casa de pedra que Gonçalo Coelho, comandante da expedição portuguesa de 1503, teria construído nas imediações da Praia do Flamengo e que os índios chamavam de akari oca (casa de homem branco).
Da série Esse Lugar Tem História
É bom lembrar que a Beira-Mar terminava na Praia de Botafogo e começava na não mais existente Praia de Santa Luzia, que contornava o Morro do Castelo. Em um artigo sobre o centenário da avenida, o historiador Milton Teixeira explica que "num pequeno trecho ela não margearia o mar, exatamente à volta do Morro da Viúva, fazendo-se a ligação da Praia do Flamengo com Botafogo por uma via interna" (a atual Avenida Oswaldo Cruz).
A Beira-Mar foi construída sobre um aterro feito com o entulho proveniente do desmonte de parte Morro do Castelo e do bota-abaixo promovido pelo então prefeito Pereira Passos. Sua inauguração, de ponta a ponta, ocorreu em 15 de novembro de 1906, com uma competição de regata e uma carreata que contou com a maior parte dos 153 automóveis existentes na cidade naquele ano.
Hoje, a extensão da Beira-Mar se restringe ao trecho entre a Rua Silveira Martins, no Flamengo, e a Avenida Marechal Câmara, no Centro.
Desportismo
De acordo com o historiador Nicolau Sevcenko, no livro História da vida privada no Brasil, o projeto de reurbanização do Rio de Janeiro implantado por Pereira Passos, conhecido como Regeneração, estabeleceu novos paradigmas simbólicos. A demolição da cidade velha, o espírito estético-higienista da reforma urbana e o surgimento de vias mais largas, ventiladas e iluminadas foram acompanhados de uma mutação cultural, que desenvolveu uma febre esportiva e uma nova relação da população com o corpo.
A construção do Pavilhão de Regatas na Avenida Beira-Mar, em Botafogo, criou, segundo Sevcenko, uma vinculação entre a modernidade e os esportes, transformando a via no principal lugar onde essa nova cultura passou a se desenrolar. As competições de remo que aconteciam na orla da avenida se transformaram na primeira febre esportiva da cidade.
Conforme artigo de João do Rio, publicado em 1915, na revista A Cigarra, o Clube de Regatas do Flamengo, sediado na nova avenida, foi o “núcleo de onde se irradiou a avassaladora paixão pelos sports”. E esse amor esportivo promoveu grandes mudanças comportamentais e na forma de vestir: “As pessoas graves olhavam ‘aquilo’ a princípio com susto. O povo encheu-se de simpatia. E os rapazes passavam de calção e de camiseta de meia dentro do mar a manhã inteira e a noite inteira”.
O fato é que novos hábitos praianos e esportivos instituídos no palco da Avenida Beira-Mar puseram fim, de forma irreversível, ao estilo esquálido das moças e dos rapazes do século XIX, que se cobriam dos pés à cabeça e evitavam sair nas horas mais ensolaradas para preservar o tom pálido da pele, que os distinguia daqueles que precisavam trabalhar. Surgia uma nova juventude que vestia short e camiseta e expunha o corpo bronzeado e torneado pela prática esportiva.
Banhos de mar
A partir de meados do século XIX, os banhos de mar passaram a ser recomendados pelos médicos do Rio de Janeiro, desde que fossem só de sal e jamais de sol. Os trajes deviam proteger da insolação e, ainda que cobrissem o corpo dos pés à cabeça, só eram cabíveis à beira-mar. Por isso, trocava-se de roupa nos balneários, a exemplo do High-Life, na Glória, e do Banhos do Flamengo.
Com a abertura da avenida, os banhos de mar mudaram de patamar: além de saudáveis, passaram a ser elegantes. Pereira Passos publicou, inclusive, regulamento para o funcionamento dos novos balneários que se instalaram na orla da Beira-Mar. Entre as normas, a obrigação do estabelecimento ter um empregado que mantivesse as moças seguras pela mão durante o mergulho na praia, já que, até então, a prática era tida como perigosa.
A partir do final da década de 1910, seguindo a moda dos balneários franceses, os trajes de banho começaram a ficar mais leves, curtos e colantes. E na década de 1920, o sol entrou, definitivamente, no rol das grandes atrações da praia. E não por qualquer motivo terapêutico, mas por uma questão estética.
Mudanças
Além das mudanças de hábito de seus banhistas, a Beira-Mar passou por outras transformações na década de 1920. Em 22, ganhou nova conexão entre os trechos de Botafogo e Flamengo: a Avenida Rui Barbosa (até então a interligação era feita exclusivamente pela Oswaldo Cruz). Durante a gestão do prefeito Prado Júnior (1926-1930), a via sofreu alterações na altura da Glória, com a inauguração da monumental Praça Paris, projetada pelo urbanista francês Alfredo Agache e executada de forma bem mais modesta do que ele previu. A construção dos jardins, do imenso chafariz e de mais uma pista da avenida significou um aterro de cerca de 200 metros sobre a Baía de Guanabara.
Ainda no governo de Prado Júnior, foi desmontado o Pavilhão de Regatas. Outro pavilhão, o Mourisco, aberto no final da década de 1910 com restaurante, sorveteria e casa de chá, resistiu até 1951, ano em que foi demolido para a abertura do Túnel do Pasmado. Em 53, a avenida foi duplicada. E em 63, com as obras de construção do Aterro do Flamengo, Botafogo voltou a ter praia, já que ela havia sido arrasada quando a Beira-Mar foi feita – neste trecho, apenas uma mureta separava a baía da avenida.
Com a inauguração da monumental obra do Aterro do Flamengo e da Avenida das Nações Unidas (nome que o aterro recebe quando chega em Botafogo), a antiga Beira-Mar perdeu grande parte de suas características e de seu brilho. Ficou reduzida ao trecho entre o Centro e a Glória. Mas não é por isso que deixou de ser um marco na construção da identidade da cidade. Talvez, sem ela, o Rio da primeira metade do século XX não tivesse consolidado seu epíteto de Cidade Maravilhosa.
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