Revitalizado após a derrubada do Viaduto da Perimetral, em 2014, o principal boulevard do complexo Porto Maravilha nasceu com o nome de Avenida do Cais e começou a ser construído durante as grandes reformas urbanas ocorridas no Rio de Janeiro, na gestão do presidente Rodrigues Alves (1902-1906). A nova via integrava o projeto de remodelação da região portuária, a parte economicamente mais importante do Plano de Embelezamento e Saneamento da Cidade, que visava promover a modernização e a mudança da imagem internacional da então capital federal.
A Avenida do Cais, rebatizada posteriormente de Rodrigues Alves, foi construída sobre um extenso aterro das enseadas e praias que ali existiam, algumas entrecortadas por morros e pedras que dificultavam a sua interligação. O acesso por terra entre elas era feito pelo interior, por vias estreitas e não raro sinuosas, que dificultavam o transporte de carga em grande escala.
A geografia da região era, por isso, vista como um dos empecilhos ao crescimento do Porto do Rio de Janeiro – cujo movimento vinha sendo superado pelo Porto de Santos desde 1890. A abertura de novas vias de escoamento também era tida como crucial. As avenidas do Cais e do Mangue (atual Francisco Bicalho) facilitariam a distribuição comercial para as regiões norte e oeste da cidade, enquanto a Avenida Central (Rio Branco) cumpriria o mesmo papel nos sentidos sul e centro. O alargamento e a construção de outras ruas – como a Mem de Sá, a Estácio de Sá, a Visconde de Inhaúma, as avenidas Passos, Marechal Floriano, Salvador de Sá e Beira-Mar – complementavam o projeto de melhoria do fluxo de transporte.
A reforma portuária, que incluía o alinhamento da orla da região, e a abertura da Avenida do Cais significaram o aterramento das enseadas da Gamboa, dos Alferes e de São Diogo e o ganho de uma nova superfície de 175 mil metros quadrados sobre a Baía de Guanabara. E, ainda, a demolição do Morro do Senado (atual Praça da Cruz Vermelha), de onde veio a maior parte do material de aterro, e o arrasamento das ilhas dos Melões e das Moças, localizadas, respectivamente, nas imediações da Rodoviária Novo Rio e da Rua da América (principal via do bairro de Santo Cristo).
A Rodrigues Alves foi inaugurada junto com o Cais do Porto e seus armazéns em 1910, na gestão do presidente Nilo Peçanha (1909-1910). Mas o término das obras portuárias só ocorreu em 1911 e não foi suficiente para o Rio recuperar sua condição de maior porto de exportação do país, embora tenha reconquistado seu lugar como principal porto brasileiro de importação e distribuição de mercadorias.
Da série Esse Lugar Tem História
Povoamento e marcos da negritude
Até o século XVIII, as terras que se transformariam nos futuros bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo eram, de forma geral, ocupadas por casas de pescadores, parcas chácaras e alguns trapiches particulares – armazéns acompanhados de toscas pontes de madeira que serviam para embarcar e desembarcar mercadorias. Era uma área relativamente esquecida pelas autoridades coloniais, que só começaram a se preocupar efetivamente com ela depois que o corsário francês Duguay-Trouin invadiu a cidade, em 1711, instalou seu principal arsenal de artilharia no Morro da Conceição e fincou outras bases militares na região, até a desembocadura do Saco de São Diogo, a partir de onde também podia atingir a cidade.
Embora o governo colonial tenha construído um forte e instalado guaritas de sentinela após a invasão francesa, o crescimento dessa área só começou a ocorrer, de fato, após o Marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil, com o apoio da Coroa portuguesa, ter conseguido transferir no final de sua gestão, em 1779, o desembarque de escravos para o cais erguido na Praia do Valongo, na Enseadada da Gamboa. A transferência do tráfico negreiro para lá impactou fortemente a região, com o aumento do movimento de mercadores, a abertura de novos escritórios de corretores de escravos e a construção de armazéns-depósitos de negros. Isso sem falar no comércio paralelo criado no entorno, como tabernas, serralherias especializadas na fabricação de objetos de tortura de escravos e até mesmo uma casa de engorda dos cativos recém-chegados da África.
O Valongo era, na verdade, um complexo com quatro áreas diferentes, porém articuladas. Além do cais, tinha a Rua do Valongo (atual Camerino) – onde ficavam os armazéns-depósitos que suscitaram vários relatos de viajantes europeus, impactados pela imundície e desumanidade no trato dos negros –, o Cemitério dos Pretos Novos (Rua Pedro Ernesto) – onde os corpos eram jogados e queimados de tempos em tempos –, e o Lazareto – um hospital às margens do Saco da Gamboa, destinado a isolar os africanos recém-chegados até que estivessem curados de suas doenças.
Com a assinatura, em novembro de 1831, da Lei Feijó, que proibia o tráfico negreiro no Brasil, o Cais do Valongo deixou de ancorar navios vindos diretamente da África, embora ainda recebesse alguns escravos do tráfico interno. Praticamente sem função desde então, foi transformado, em 1843, no Cais da Imperatriz, assim chamado por ter sido todo reformado para receber a princesa de Nápoles, Teresa Cristina, que chegou em terras brasileiras para se casar com o jovem D. Pedro II.
A presença negra na região, contudo, não esmoreceu. Tornou-se ainda mais forte no decorrer do século XIX, quando cativos baianos vieram em massa para o Rio de Janeiro, a partir da Revolta dos Malês (1835) e do empobrecimento dos senhores de engenho, que, com falta de dinheiro e medo de novos levantes, optaram por se desfazer de seus escravos. Em razão do baixo preço dos aluguéis das moradias e da farta oferta de trabalho, principalmente na estiva, muitos deles se instalaram na Zona Portuária, compreendida entre a Prainha (região da Praça Mauá) e a Enseada de São Cristóvão.
Trapiches, cidadania e samba
Com a transferência do tráfico de escravos para o Valongo em 1779, as atividades portuárias se expandiram para as praias vizinhas da Gamboa e do Saco dos Alferes e desencadearam a construção de vários novos trapiches particulares na região. É que a antiga área de marinha da cidade, entre os morros do Castelo e de São Bento, cada vez mais congestionada, fazia a antiga Alfândega (no início da rua homônima) se tornar pouco a pouco obsoleta.
Com a chegada da família real ao Brasil e a abertura dos portos às nações amigas, o movimento de importação e exportação se intensificou tanto que o príncipe regente D. João autorizou os trapiches a despacharem como aduana. O fato é que, segundo a historiadora Maria Cecília Velasco e Cruz, no início do século XX, antes da reforma portuária, o Porto do Rio de Janeiro era um complexo de unidades independentes, que se estendia do Cais Pharoux (Praça Quinze) até a Enseada de São Cristóvão, incluindo diversas ilhas.
Nessa época, já haviam sido construídas a Doca de Pedro II (atual Galpão da Cidadania, na Avenida Barão de Tefé), finalizada em 1876, e a Estação Marítima da Gamboa, inaugurada no início da década de 1880 e cujos armazéns abrigam, hoje, a Cidade do Samba. Ambos os projetos foram concebidos pelo engenheiro negro André Rebouças. O da Doca previa o embarque do café por meio de uma linha de trem que fosse até ali, mas como isso nunca aconteceu, a mercadoria chegava do interior na Estação do Campo (atual Central do Brasil) e era levada por carroça, depois de percorrer estreitos e sinuosos caminhos até seu destino.
A instalação do primeiro ramal ferroviário servindo a Zona Portuária só surgiu com a construção da Estação Marítima da Gamboa, que previa a abertura de um túnel sob o Morro da Providência, para fazer uma rápida ligação com a Estação do Campo. Mas a continuidade do projeto de modernização do Porto esbarrava no poder político dos donos dos trapiches, que tinham representantes ocupando papéis-chave na Câmara Municipal.
Um dos trapiches mais conhecidos ficava na Prainha, atual região da Praça Mauá. Nele, eram desembarcadas as sacas de sal que abasteciam a cidade, levadas até os armazéns da Rua Estreita (atual Avenida Marechal Floriano) por escravos, que escalavam uma pedra que cruzava o Morro da Conceição. Transformados em estivadores após a Abolição da Escravidão, costumavam se reunir na base da Pedra do Sal, após exaustiva jornada de trabalho, para batucar e relaxar. No início do século XX, integrava essa turma de batuque João da Baiana, Pixinguinha, Donga e outros nomes ligados à invenção do samba.
Deterioração e revitalização
Com a abertura da Avenida Presidente Vargas na década de 1940, a região central do Rio de Janeiro ficou praticamente dividida em duas partes, com a porção voltada para o Porto transformada numa espécie de fundos da cidade. Duas outras obras tiveram grande impacto sobre a Zona Portuária: as construções da Linha Lilás, ligando o Túnel Santa Bárbara ao bairro de Santo Cristo, e do elevado da Avenida Perimetral, que tirou a visão do céu da Rodrigues Alves, levando-a às sombras e à rápida decadência. Para culminar o processo de deterioração, grandes alterações tecnológicas nas operações portuárias, com a utilização do sistema de contêineres, foram deslocando os terminais de embarque e desembarque de mercadorias para o bairro do Caju, esvaziando os armazéns erguidos ao longo da antiga Avenida do Cais e transformando aquela região na área de menor densidade populacional do município.
O processo vivido pela Zona Portuária, de degradação em prol da construção de viadutos, também foi experimentado por outras metrópoles do mundo. E, por isso, surgiu internacionalmente um novo conceito de mobilidade urbana, com foco no transporte público e na integração de seus diversos modais (trem, metrô, barcas, ônibus, VLT, aeroporto etc.). O projeto Porto Maravilha e o desmonte do Elevado da Perimetral acompanharam esse novo paradigma mundial. Seul, capital da Coreia do Sul, por exemplo, pôs abaixo um viaduto de 9,4 quilômetros, tamanha a depreciação que ele havia promovido ao patrimônio e à qualidade de vida da cidade.
Hoje, a Avenida Rodrigues Alves e toda a Zona Portuária estão se reencontrando com uma memória que vinha sendo esquecida desde a transformação do Valongo em Cais da Imperatriz e seu posterior desaparecimento, com as obras de aterro ocorridas no início do século XX. As escavações que trouxeram de volta à tona o Cemitério dos Pretos Novos, em 1996, e o Cais do Valongo, em 2011, talvez não deixem mais o Rio de Janeiro esquecer que já foi a cidade com o maior número de negros escravizados do planeta.
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