Há cem anos, com a gravação de Pelo Telefone, o Rio de Janeiro conheceu o samba, ritmo musical que viria a se transformar em marca registrada da cidade. Curiosamente, não constava da letra original o trecho mais consagrado da canção: “Pelo telefone / o chefe da polícia mandou me avisar / que, na Carioca, tem uma roleta para se jogar”. Foi assim que a música pegou. Mas, na verdade, tratava-se de uma paródia – para criticar a tolerância da polícia com o jogo – feita pelos jornalistas de A Noite, cuja redação funcionava no fervilhante Largo da Carioca.
Era a fase áurea do Largo, logo após as grandes reformas do prefeito Pereira Passos, que inspiraram a origem do epíteto de Cidade Maravilhosa para o Rio de Janeiro. Poucas décadas depois, o lugar ainda sofreria transformações radicais, não só por causa da derrubada de várias construções, mas, principalmente, pelo desmonte do Morro de Santo Antônio, que fazia limite com as ruas Evaristo da Veiga e do Lavradio.
A derrubada do morro não foi a única grande mudança na geografia do Largo da Carioca, que, aliás, surgiu no esteio de uma transformação drástica na paisagem do local. Quando os portugueses chegaram ao Rio, existia ali uma lagoa, chamada de Santo Antônio em razão de uma ermida construída no alto da colina, em homenagem ao santo.
Da série Esse Lugar Tem História
A lagoa começou a ser aterrada em 1723, no mesmo ano em que foi inaugurado, também lá, o primeiro chafariz público da cidade: o Chafariz da Carioca, que ganhou esse nome por captar as águas do rio homônimo, através de um sistema de canalização que percorria o Morro de Santa Teresa. A obra foi uma grande conquista da época, pois a captação de água potável sempre foi um problema para os colonizadores. Até então, os moradores da área urbana tinham que buscá-la de canoa na foz do rio, que desaguava na Praia do Flamengo.
O aterro – que logo passou a ser chamado de Largo da Carioca em razão do chafariz – demorou cerca de cinco anos para ser concluído e sempre foi desejado pelos frades franciscanos. Desde que se instalaram no Morro de Santo Antônio, no início do século XVII, eles reclamavam dos mosquitos que procriavam nas águas paradas da lagoa, que se estendia, em forma de manguezal, até a altura do Theatro Municipal.
Na época da inauguração do chafariz, o Largo da Carioca ainda era o lugar mais ermo do centro urbano, até então delimitado pelos morros do Castelo, de São Bento, da Conceição e de Santo Antônio. Sua ligação com a principal rua da cidade, a Direita (atual Primeiro de Março), era feita por um caminho que deu origem à Rua São José.
Além de distante, o Largo da Carioca também era uma área perigosa e humilde, em razão da vocação dos franciscanos de acolher os mais necessitados, os mendicantes, os desvalidos, os de vida errante e os escravos, que, quando morriam sob a proteção dos frades, eram enterrados no sopé do morro, num cemitério voltado para a região da atual Rua da Carioca. O local de construção do chafariz, usado principalmente por aqueles que faziam o trabalho braçal – os negros aguadeiros e as lavadeiras –, estava, portanto, condizente com a estratificação espacial da cidade colonial.
Donos do pedaço
Pouco tempo após a inauguração do chafariz, começaram a surgir novas edificações importantes que iriam mudar a paisagem do Largo da Carioca. Em 1733, a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, formada pelos devotos leigos do santo, finalizou as obras da igreja que mandaram construir ao lado do convento 76 anos antes. A nova edificação, que no decorrer das décadas subsequentes ainda receberia rica decoração e se transformaria num dos mais belos templos barrocos da cidade, aumentou o movimento no logradouro.
Em 1750, com o fim das obras do Aqueduto da Carioca, o chafariz foi trocado por outro mais suntuoso e funcional. Os franciscanos também deram início à construção de um novo convento, pois o antigo, finalizado em 1617, tinha ficado pequeno para acomodar tantos novos religiosos que chegavam à cidade. É que, por ter virado porto de escoamento do ouro das Minas Gerais, o Rio de Janeiro havia se transformado no centro urbano mais importante da colônia. Sua população crescia rapidamente, junto com o maior volume de dinheiro em circulação.
Em 1763, os irmãos da Ordem Terceira inauguraram o Hospital de São Francisco da Penitência, em área cedida pelos franciscanos. A fachada principal da instituição era voltada para o Largo, mas, segundo Brasil Gérson, autor de História das Ruas do Rio, a lateral dava para a Rua do Piolho, atual Rua da Carioca. Ainda de acordo com ele, a doação do terreno permitiu que a via passasse a ter construções dos dois lados, pois, até então, um deles (o lado ímpar) era ocupado pela cerca do convento.
O hospital trouxe novo movimento ao cotidiano do Largo da Carioca. Era um dos maiores e mais importantes da cidade setecentista. Além disso, em seu piso térreo, foi instalado o Bar do Necrotério, que, por ficar aberto à noite, se tornou ponto de encontro dos boêmios, no final do século XVIII. A Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência também virou personagem central do crescimento da Rua da Carioca, por ser a maior proprietária de seus terrenos e dos imóveis neles construídos. Tal realidade ainda perdura no século atual, mas, com a decadência do comércio no centro da cidade, a instituição começou a se desfazer deles.
Em 2012, vendeu 19 sobrados – do número 11 ao 47, além do 53 – ao Banco Opportunity. O negócio acendeu a luz vermelha entre os arquitetos e as instituições vinculadas ao patrimônio histórico. No ano seguinte, a Prefeitura transformou a Rua da Carioca em sítio cultural, protegendo seu conjunto arquitetônico e tombando nove imóveis, de forma definitiva.
Nos tempos da monarquia
Com a chegada da família real ao Rio de Janeiro, o centro urbano cresceu e rapidamente ultrapassou os limites do Morro de Santo Antônio. A dinastia dos Bragança era devota de São Francisco, e o Largo da Carioca vivia dias de pompa quando D. João subia até o convento para prestigiar a festa e a missa solene em homenagem ao santo, em 4 de outubro. Essa tradição familiar foi mantida por D. Pedro I e D. Pedro II.
Em meados do século XIX, o velho Chafariz da Carioca ainda exercia papel importante no abastecimento do Centro e foi trocado por outro com maior capacidade. Nessa mesma época, engenheiros e médicos começaram a amadurecer a ideia de demolição dos morros de Santo Antônio e do Castelo, pois eram tidos como grandes responsáveis pelas pestes que assolavam a cidade, por impedirem a melhor circulação de ar.
Na década de 1870, várias confeitarias proliferavam no entorno do Largo da Carioca, que passou a ganhar um colorido cultural com a inauguração, na Rua da Guarda Velha (atual Avenida Treze de Maio), do Theatro D. Pedro II – que passou a se chamar Theatro Lyrico após a Proclamação da República. Nesse mesmo logradouro, bem ao lado das escadarias do convento, começou a funcionar a Imprensa Nacional.
Apogeu
Em 1892, fazendo o percurso entre o Largo da Carioca e o Largo do Machado, foi inaugurada a primeira linha de bonde eletrificada da cidade. Era explorada pela Companhia Ferro-Carril Jardim Botânico, a mesma que, em 1910, também inaugurou o Hotel Avenida, um dos maiores empreendimentos da Avenida Central (atual Rio Branco), que, com as obras de Pereira Passos, havia se transformado no mais chique e emblemático boulevard da cidade.
O prédio do hotel – demolido em 1957 para dar lugar ao Edifício Avenida Central – também tinha entrada pelo Largo da Carioca. Em seu pavimento térreo ficava a Galeria Cruzeiro, com comércio diversificado e vários bares e restaurantes que lotavam nos horários de maior movimento da estação de bonde, de onde partiam as linhas em direção à Zona Sul. Durante o carnaval, a galeria se transformava em um dos cenários prediletos dos foliões.
Na época, o Largo da Carioca também era um dos polos de imprensa da capital da República, pois, além da Imprensa Nacional, estavam localizados ali os jornais Correio da Manhã e A Noite. No final da década de 1910, no terreno onde fica, hoje, o prédio da Caixa Econômica Federal, ao lado da estação do Metrô, começou a ser construído o Liceu de Artes e Ofícios (que já havia funcionado nas imediações do Campo de Santana).
Demolições e hoje
Entre as décadas de 1920 e 1960, o Largo da Carioca voltou a passar por grandes transformações. Em 1926, foi abaixo o velho chafariz que deu nome ao lugar. Em 1934, o Theatro Lyrico e, em 1947, o prédio da Imprensa Nacional. Na década de 1950, também foram ao chão o Liceu de Artes e Ofícios, o emblemático Hotel Avenida (junto com sua Galeria Cruzeiro) e o Morro de Santo Antônio.
O desmonte da maior colina do centro do Rio de Janeiro – cujas terras serviram para fazer o Aterro do Flamengo – poupou o conjunto arquitetônico do Convento de Santo Antônio. Mas mudou radicalmente a paisagem do lugar, com a abertura da Avenida Chile e a construção de três enormes edifícios – Petrobras, BNDES e BNH (depois adquirido pela Caixa) –, que, de tão imponentes e grandiosos, passaram a compor o cenário do Largo.
Em 1981, com a inauguração da estação do Metrô, o Largo da Carioca retomou sua vocação, iniciada no final do século XIX, de lugar estratégico no transporte urbano de passageiros. Durante um bom tempo, aliás, muita gente o chamava de Tabuleiro da Baiana, devido à estação de bonde que ali existiu entre 1937 e o início dos anos 1970 e que ganhou esse nome por seu formato retangular, que lembrava um tabuleiro. Hoje, a Estação da Carioca é a mais movimentada da Linha 1.
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