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A Favela do Esqueleto, no Maracanã. Tinha esse nome por se tratar da invasão de um terreno onde havia o esqueleto de um prédio de hospital inacabado. Foi removida por Carlos Lacerda no início da década de 1960, para dar lugar ao campus da Uerj. Grande parte de seus moradores foi assentada na Vila Kennedy (Crédito: Acervo Uerj)

Quando Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914-1977) assumiu a função de primeiro governador do estado da Guanabara, em 1960, as favelas estavam em expansão na cidade: localizavam-se nas proximidades dos empregos, nas indústrias instaladas na Zona Norte, e dos serviços, na Zona Sul. Segundo dados da historiadora Armelle Enders, em 1960, essas regiões abrigavam mais de 330 mil pessoas, que aos poucos ocuparam, também, os arredores industriais da Avenida Brasil. Ainda como jornalista, Lacerda promoveu, entre maio e junho de 1948, uma vigorosa campanha por sua extinção, articulada pelo jornal Correio da Manhã, que ficou conhecida como a Batalha do Rio de Janeiro – símbolo indicativo da complexidade e da dimensão do tema, que envolvia correntes políticas e religiosas.

Lacerda, governador da Guanabara entre 1960 e 1965, além de dar prosseguimento à febre viária surgida nos anos 1950, iniciou, dentro do conceito de renovação urbana, o programa de remoção das favelas. As linhas mestras emanaram de um projeto realizado pelo urbanista grego Constantinos Doxiadis (1914-1975), que guardava um espaço para a questão habitacional no tocante às favelas. Se por um lado existia no estudo uma sintonia com a realidade, por outro, fica evidenciado que a matéria era tratada mais como parte da formulação geral de um plano de ordenamento físico da cidade do que como questão social. A proposta do arquiteto em relação às comunidades, após levantamentos e diagnósticos, sugeria a reurbanização ou recuperação de algumas, desde que não prejudicassem os objetivos contidos no projeto. Quanto às demais, determinava a remoção para áreas próximas dos empregos, ou para localidades servidas por linhas de transporte de qualidade e econômicas.

A política de remoção, ou seja, o processo de transferência das populações de algumas favelas para lugares distantes da área central gerou muito descontentamento e protestos. Surgiram conjuntos habitacionais como a Cidade de Deus, em Jacarepaguá (o maior da época, com 6.658 unidades habitacionais), construído inicialmente com recursos do projeto norte-americano Aliança para o Progresso; Vila Kennedy, em Senador Camará; Vila Aliança, em Bangu; e Vila Esperança, em Vigário Geral, composta por pequenas unidades padronizadas servidas por transportes públicos insuficientes e distantes dos empregos da maioria.

Hoje, quem passa pelo Parque da Catacumba, na Lagoa, pelos prédios da chamada Selva de Pedra, no Leblon, ou pelo campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no bairro do Maracanã, nem imagina que esses espaços abrigaram as três maiores favelas do Rio dos anos 1960: Catacumba, Praia do Pinto e Esqueleto, respectivamente.

Apesar da distância do Centro, da separação forçada dos vizinhos e da forma como o governo conduziu as remoções, para alguns ex-moradores das comunidades extintas a mudança teve também pontos positivos. Entre prós e contras, destacam a conquista dos títulos de propriedade e de sistemas mínimos de infraestrutura, como água encanada e esgoto.

O jornalista Zuenir Ventura aponta, em seu livro Cidade Partida, citado pelo historiador Jaime Larry Benchimol, outro aspecto na política de remoção de favelas desencadeada nos anos 1960: “A política de exclusão foi um desastre. Não apenas moral e humanitário, mas também do ponto de vista da eficácia. (...) ao empurrarem as ‘classes perigosas’ para os espaços de baixo valor imobiliário, as ‘classes dirigentes’ não perceberam que as estavam colocando numa situação estrategicamente privilegiada em caso de confronto (...). Enquanto dos morros só se ouviam os sons do samba, parecia não haver problema. Mas agora se ouvem os tiros”.

Diversos aspectos envolvem tal questão. A vulnerabilidade é um dos mais importantes em domicílios onde a carência persiste, tanto na oferta de serviços públicos quanto nas condições gerais. Muitas dessas habitações, irregularmente construídas, quando não correm riscos de segurança, situam-se em áreas de preservação ambiental. Não contam com arruamentos, plano urbano, água e luz. Dessa precariedade, resultado da pobreza de seus moradores e do descaso do poder público, surgiram imagens que fizeram da favela um lugar do perigo, a ser erradicado; da falta e da carência, bem diferente dos locais de residência do restante da população urbana tida como “civilizada”, segundo expressão utilizada pelo professor Márcio Moraes Valença.

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O projeto arquitetônico da Uerj é assinado por Flávio Marinho Rego e Luiz Paulo Conde, com exceção do Pavilhão Haroldo Lisboa da Cunha, construído a partir do esqueleto do hospital inacabado, que inspirou o nome da antiga favela (Crédito: Junius/Wikimedia Commons)

A ideia de que as favelas podem ser resumidas como locais onde o mundo da desordem impera é insuficiente para compreendê-las. De acordo com a antropóloga Alba Zaluar, a marca também deveria ser atribuída à “criatividade cultural e política, à capacidade de luta e de organização demonstrada pelos favelados” no decorrer do tempo. A associação entre violência e favela leva a uma simplificação de que pobreza gera violência, quando devem ser considerados fatores como a desigualdade social e a dinâmica de produção da riqueza.

A ocupação desses espaços no Rio de Janeiro prosseguiu nas décadas seguintes sem traçado planejado, sendo um fenômeno essencialmente metropolitano e espalhando-se, acentuadamente, pelas encostas dos morros e pelas periferias da cidade. O compositor Pedro Luís, a propósito, pergunta na letra da canção Miséria no Japão:

“Quem foi que disse que a miséria não ri
Quem tá pensando que não existe miséria no Japão
Quem tá falando que não existem tesouros na favela?
A vida é bela
Tá tudo estranho
É tudo caro
Mundo é tamanho”.