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Charqueada no Rio Grande. A produção e a venda da carne salgada gaúcha sofriam a concorrência do charque mais barato vendido pela Argentina e Uruguai. Aquarela sobre papel (24,4 x 40,4 cm) de Jean-Baptiste Debret. Domínio público, Museus Castro Maya

Em 1835, mesmo ano em que os cabanos tomaram pela primeira vez a cidade de Belém, ocorria, no extremo sul do Império, uma outra revolta, a Guerra dos Farrapos, também conhecida como a Farroupilha. Iniciada na província do Rio Grande do Sul, se alastrou pela vizinha província de Santa Catarina. Nenhuma revolução ocorrida no Brasil monárquico durou tanto tempo. Durante uma década, de 1835 a 1845, os rebeldes lutaram contra as tropas do governo.

Na América portuguesa, por muito tempo, o extremo sul do Brasil ficara quase que abandonado. Sem oferecer nenhum produto tropical que a metrópole pudesse explorar, manteve-se à margem do mercado externo. Durante os séculos XVII e XVIII, missões religiosas jesuíticas espanholas se estabeleceram no atual estado do Rio Grande do Sul, reunindo muitos índios. Destruídas pelos bandeirantes paulistas em busca de indígenas que seriam vendidos como escravos, o gado criado nessas missões ficou solto. Essa região, chamada pelos portugueses de Continente do Rio Grande, aos poucos foi sendo ocupada por colonos que lá se fixaram e começaram a reunir o gado que ficara disperso. A pecuária se desenvolveu e logo se tornou a principal atividade econômica do sul da colônia.

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Aspecto de Florianópolis. Gravura de Lamaitre, 1846. A Farroupilha, ocorrida entre os anos de 1835 e 1845, se estendeu até a província de Santa Catarina. Domínio público, Biblioteca Nacional Digital

No século XVIII, as estâncias (fazendas) sulinas já abasteciam o mercado interno com mulas, fundamentais para o transporte, e com o charque, carne salgada que era a alimentação básica dos escravos e da população mais pobre. Além disso, o surgimento das charqueadas permitiu melhor aproveitamento do couro para a exportação.

A capitania do Rio Grande de São Pedro, atual Rio Grande do Sul, sempre fora objeto de disputa entre portugueses e espanhóis. Fazendo fronteira com territórios que pertenciam à Espanha, sua população frequentemente se envolvia em conflitos. No livro Um Certo Capitão Rodrigo, o escritor Erico Verissimo relata como essas disputas afetavam a vida dos habitantes do "Continente": "Escuta o que vou lhe dizer, amigo. Nesta província a gente só pode ter como certo uma coisa: mais cedo ou mais tarde rebenta uma guerra ou uma revolução. (...) Que é que adianta plantar, criar, trabalhar como um burro de carga? (...) O castelhano está aí mesmo. Hoje é Montevidéu. Amanhã, Buenos Aires. E nós aqui no Continente sempre acabamos entrando na dança".

O charque rio-grandense competia diretamente com os da Argentina e Uruguai. Os gaúchos, que utilizavam mão de obra escrava, não tinham condições de concorrer com os platinos, que, empregando técnicas mais modernas e trabalho assalariado, conseguiam uma produção maior, com preços mais baixos. Assim, o charque gaúcho só podia concorrer com o platino nos períodos em que havia guerras internas no Prata. Quando a produção platina se reorganizava, a economia rio-grandense sofria grandes perdas.

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Escravo negro conduzindo tropas no Rio Grande. A manutenção da escravidão contribuía para a menor competitividade do charque gaúcho. Aquarela sobre papel de Jean-Baptiste Debret. Domínio público, Museus Castro Maya

Segundo o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, "nestas ocasiões os produtores gaúchos acusavam a política de tributos vigente no Brasil como responsável por seus malogros. Acreditavam que o alto preço do sal e a taxação baixa do charque importado impediam a concorrência do produto nacional com o estrangeiro, e julgavam que a manutenção desta política devia-se aos interesses dos consumidores, das províncias do Norte, de importarem charque abundante e barato, ainda que isso custasse a ruína dos produtores nacionais... Não eram capazes de ver claramente, entretanto que... não era o "custo material" da produção brasileira do charque que a tornava incapaz de competir com a estrangeira, mas sim seu "custo social", isto é, o peso da escravidão na produção de bens que deviam concorrer num mercado competitivo".

Estancieiros, charqueadores e exportadores sulinos passaram a exigir que o governo imperial adotasse uma política protecionista para seus produtos, principalmente para o charque. Queixavam-se de que o charque argentino e o uruguaio eram beneficiados por pagar baixas taxas alfandegárias, enquanto que o produzido no Sul, além de pagar altos impostos, era tributado até para ser vendido a outras províncias.

A política econômica do governo imperial atendia aos proprietários de escravos e terras, particularmente os do Centro-Sul, interessados em comprar pelo menor preço possível a carne salgada necessária à alimentação de seus escravos. Para tanto, o governo imperial mantinha baixos os impostos sobre o charque e outros produtos vindos da região platina, ao mesmo tempo que cobrava impostos sobre os produtos sulinos, além de não tomar qualquer medida que assegurasse sua exportação. Além do problema econômico, havia divergências de caráter político-administrativo. Até a vinda da corte para o Rio de Janeiro, a província gozava de certa autonomia. Com a centralização, começaram os choques entre o poder local, representado pelos grandes estancieiros e charqueadores, e o governo do Rio de Janeiro.

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Escravo puxando a pelota, embarcação típica do Rio Grande, feita em couro, para travessia de rios. Aquarela sobre papel de Jean-Baptiste Debret. Domínio público, Museus Castro Maya

O descontentamento aumentou quando, em 1834, Antônio Rodrigues Fernandes Braga foi nomeado para ocupar a presidência da província. Os grupos dominantes do Sul eram contra a nomeação dos presidentes de províncias e dos funcionários locais pelo governo. Fernandes Braga, seguindo ordens do Rio de Janeiro, criou novos impostos, inclusive um sobre propriedades rurais, e tentou organizar um corpo militar para enfrentar as forças dos estancieiros, as companhias de guerrilhas.